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Os Enforcados

Todo carnaval tem seu fim

Por Fabricio Duque

Durante o Festival do Rio 2024

Os Enforcados

Desde sempre o cinema brasileiro foi motivado por um efusivo e genuíno impulso de transformar em tela as inquietações criativas dos pensamentos mais conceituais (e intraduzíveis) de seus artistas. Esse cinema era usado e abusado como um amplificador de vozes internas, e, dessa forma, ganhou a forma da própria liberdade, numa construção bem mais despretensiosa. Quando os outros cinemas queriam o conforto das padronizadas narrativas que já eram aceitas e internalizadas pelo popular, esse cinema brasileiro, muito ousado, preferia o novo (ainda não realizado), a desconstrução da mise-en-scène, a descolonização estética e o mais intrínseco fluxo em processo de movimento, que existia na própria vida, entre o instante do querer ao momento do agir, incluindo-se principalmente suas esperas. 

Sim, mas como acontece “nas melhores famílias”, o “lado negro da força”, o do caminho mais fácil e palatável, conseguiu “minar” a autoralidade com a ideia de que a sétima arte era na verdade o que audiência desejava como entretenimento, cuja protagonista deu holofotes à pipoca em detrimento do pensar aprofundado, que questionava o indivíduo como ser social. Essa nova era entrou em num ciclo vicioso e paradoxal. Filmes eram feitos para o público e não o contrário. É, mas que bom que há exceções a toda regra. Agora, nós podemos perceber que essas escolhas mais “fora da curva” são mais “escolhidas” por seus cineastas contemporâneos. Um desses exemplos é o novo longa-metragem “Os Enforcados”, de Fernando Coimbra (do premiado e cultuado “O Lobo Atrás da Porta”). 

Exibido na mostra competitiva da Première Brasil do Festival do Rio 2024 (e inicialmente no Festival de Toronto do mesmo ano), “Os Enforcados” é o típico filme que quer quebrar todas as zonas de conforto e retirar todas as redes de proteção de sua criação narrativa, para abraçar especialmente o ambiente da loucura retro-alimentada, co-dependente e desenvolvida de suas personagens, como se fosse um elemento vital, naturalista, entranhado. O que encontramos na família deste filme é o efeito  disfuncional e tóxico do consumo “manada de ser”, obrigando esses seres sociais, numa necessidade re-conceituada de se encaixar na forma dos ricos, ter que fazer o que for preciso para estar nesse organismo invólucro. A esses emergentes, a cozinha perfeita e uma escultura de carnaval representam a ascensão e o sucesso tão procurado. 

Mas como diz no popular “pobre sempre terá alma de pobre”, sempre trará ao novo universo resquícios, idiossincrasias e fetiches sociais do ex-mundo. E assim, é entre esses quereres fúteis e limitados que “Os Enforcados” acontece. No tarô, a carta O Enforcado representa sacrifício, mesmo que implique abrir de algo que se considera valioso. Este longa-metragem é um dos melhores exemplos para referenciar a frase “Proteja-me do que eu quero”, que a artista Jenny Holzer usou em uma exposição após lê-la no parachoque de um caminhão em uma estrada brasileira. Sim, é exatamente por este caminho que “Os Enforcados” vai: o de se desconstruir pelas reviravoltas das situações. Há sempre aqui um fim que justifica um meio. Um barulho atravessado que precisa ser suportado para o grande resultado. As intermitências de uma obra versus o sonho. 

“Os Enforcados” não é só sobre a mais real e orgânica sobrevivências dos seres social, mas sim e também uma ode à fisiologia cognitiva da condição humana em estágios de emergência e de desespero. Nesse exato momento em que se vive tais crônicas inquietudes, não se permite o julgamento alheio. Aqui não entra maniqueísmos, moralidades e éticas. É o próprio mundo selvagem da lei do mais forte. Para se manter, é preciso radicalizar nas decisões sobre os escusos “negócios”. E tudo isso é bem verbalizado, explicado e bem didático nos diálogos e ações mais explícitas. Sim, mas vai por mim que é apenas um momento que o espectador necessita de uma maior “capacidade de abstração”, porque o melhor do filme está por vir. E acredite, será muito bom!

Este filme nos conduz pelo constraste de dois mundos: ser natural igual os ricos e, do outro lado, o costume de ser popular, como os ensaios de uma escola de samba, por exemplo. Numa fotografia mais de sensação adormecida, por uma luz mais amadeirada, que sugere o sonho vívido e de sinestesia real, “Os Enforcados”, ao mergulhar de verdade no gênero essencial, ganha maestria. Quando perde a atmosfera de novela e corta as cordas do paraquedas, e assim experimenta a queda livre, este longa-metragem adquire uma personalidade gore de suspense insano, histérico, cruel, escatológico, surtado, visceral, colérico, enlouquecido, psicopático. Ao fazer isso, a protagonista, possuída pela atriz Leandra Leal, se desprende de qualquer método de interpretação e se entrega, sem medo da volta, a um de seus papéis mais catárticos. É aí que reside toda a perfeição do filme, após nosso sacrifício condescendente de abstrair o tom novelesco do antes (de construir o acordar de sua psicopatia e suas tendências à violência), nós agora podemos nos deliciar com a mais mórbida e despretensiosa liberdade da criação. Cada vez que “Os Enforcados” anda, mais se desenforca. É como se a mente da personagem perdesse completamente o controle e ficasse desenfreada ao ato final. De uma terapia de choque, em transe, que “resolve” tudo de uma vez. 

Talvez tudo do antes tenha um sentido, uma razão, para agora nos ofertar a experiência da epifania. “Os Enforcados” fica perspicaz com suas metáforas surreais, adentrando num espiral de acontecimentos absurdos e non-sense. Tudo aqui fica mais real, mais verdadeiro, mais maquiavélico, mais ácido, mais nervosamente cômico, mais psicológico, mais válido, mais crível e bem mais deliciosamente manipulado. As maracutaias, o universo do jogo do bicho, o roubo de um corpo. “E o ser humano quando tá com fome faz o que? Abre a boca!”, diz-se. E assim, o carnaval acaba, entre o pragmatismo e o impulso; chantagem e “olho grande”; perseguições e mortes. É, “Os Enforcados” é um filme de matar!

4 Nota do Crítico 5 1

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