Os Cães Não Dormiram Ontem à Noite
Ruínas que convergem
Por Vitor Velloso
Durante a Mostra de SP 2021
“Os Cães Não Dormiram Ontem à Noite”, de Ramin Rasouli, é uma obra que promete o entrelace de suas diferentes narrativas mas acaba acertando um “Babel” de reconciliações. O projeto se debruça em três histórias distintas que são afetadas pelo mesmo evento, partindo desse ponto paralelo que em algum momento converge, a direção procura contextualizar cada um dos personagens para que o espectador possa compreender o desenvolvimento dramático individual e coletivo, tanto no trauma quanto na resistência às repressões.
O longa faz um movimento problemático na medida em que julga as movimentações políticas através de um ponto de vista moral e dilui qualquer discussão dessa natureza, ou seja, não se propõe a contextualização da região do Afeganistão que está tratando, o que está em jogo, nem mesmo qual ideologia opera nessa paisagem política. A intenção é clara, internacionalizar a obra a partir de uma representação imediata do que o público estrangeiro pode compreender da violência, da repressão, da tortura e da falta de justiça. “Os Cães Não Dormiram Ontem à Noite” utiliza sua encenação deslocada da totalidade que enquadra para conseguir um efeito pragmático, uma reação automatizada dos dramas vividos por cada personagem. A cena de redenção moral de uma das personagens, ao decidir não tomar uma atitude específica, já no final da projeção, é a prova disso. É uma forma de recusa do fetiche pela violência, ao mesmo passo que mergulha na sua idealização mais primitiva, a imaginação.
Esse recurso funciona de maneira ambígua, já que conforme avançamos na obra, as três narrativas são interligadas pelo que há de mais basilar aqui, como uma conversão da matéria para o conceito, entregando-se ao simbólico como um dogma. Porém, isso gera uma falsa sensação de desenvolvimento concreto da situação de cada um dos personagens, pois o imperativo é a ânsia pela resolução dramática, a conformidade da realidade e a necessidade de um breque conciso. Nesse ponto, o filme soa perdido, sem saber como solucionar o imbróglio, abraçando as subjetividades e recorrendo ao que há de menos objetivo nessas ligações diretas e indiretas. Por mais que a direção procure expor as diferenças brutais de como cada um lida com essas repressões e traumas, recortando os espaços e isolando as ações, as coisas se distanciam em um ponto de reconciliação com os embates culturais, seja na situação de humanismos rasteiros ou na falta de coesão para encerrar os ciclos dramáticos. Cada arco vai se completando a partir da lógica da redenção como um caminho quase dogmático, encerrando na elevação que distancia as figuras centrais dos opressores.
Como um todo, “Os Cães Não Dormiram Ontem à Noite” funciona parcialmente, com alguns destaques isolados, em especial para a história da viúva, mas as ligas dessas diversas narrativas nunca são sólidas o suficiente para transformar a experiência em uma progressão contínua. Em diversos momentos a linguagem investe grandes esforços nessas subjetividades prosaicas, quase que uma fuga breve do confronto com a realidade, a fim de tentar desenvolver os personagens em direções distintas do centro de violência. Acaba se tornando um projeto que possuía um material interessante em mãos, mas que cede à certas facilidades formais que dilui parte da discussão ali presente para uma exposição imediatista, de cunho simbólico e moral. Nessa aposta, muitas fragilidades comprometem o andamento de um longa que vai se perdendo quando mais deveria se encontrar na junção das narrativas, especialmente para que não estancasse a representação em algo pueril e reproduzido à exaustão nos últimos anos. Torna-se um produto que falha gravemente em sua dinâmica, tornando-se arrastado e perdido na multiplicidade de suas histórias, ainda que consiga se distanciar das demais obras que apenas miram um fetichismo pela violência, aqui o que impera é a reconciliação com a redenção.