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Os 100 anos de “Encouraçado Potemkin”

Броненосец Потёмкин

Artigo

Os 100 anos de “Encouraçado Potemkin”

Por João Lanari Bo

Introdução

Falar sobre “Encouraçado Potemkin” é uma empreitada de risco – esse é dos filmes mais vistos e comentados da história do cinema, sem nenhuma dúvida. A obra de Sergei Eisenstein atravessou o século XX como uma referência indispensável para os amantes da sétima arte – na verdade, ela foi um dos argumentos decisivos para a caracterização do cinema como “sétima arte”. E que celebra agora em 2025 o centenário, acumulando aplausos e admiração, mas também censura e proibições, pelo seu caráter ostensivamente político. Mais do que simplesmente político, o filme logrou exprimir um páthos político, uma força expressiva diante de uma narrativa que catapultou o cinema para um nível artístico inédito – e que continua poderoso e efetivo na contemporaneidade digital que vivemos.

Para entrar nesse universo, nada melhor do que um testemunho ocular de alguém que acompanhou as filmagens da mais famosa cena do filme, o massacre das escadarias de Odessa. Boris Schnaiderman, tradutor, ensaísta, escritor, professor, crítico literário, e um dos maiores, senão o maior, especialista em literatura russa no Brasil, tinha oito anos de idade e residia com a família em Odessa. Em suas palavras:

Isto (as filmagens) aconteceu já próximo da nossa vinda para o Brasil. Eu estava brincando na grande escadaria que existe em Odessa, perto da qual morávamos e havia lá naquele dia um movimento completamente incomum. Vi umas damas com umas vestes grã-finas do começo do século XX e uns senhores engravatados e de chapéu. Isso chamou minha atenção. Era tudo muito estranho, e de repente aqueles senhores começaram a atirar os chapéus para o ar. Filmava-se então uma cena do Encouraçado, coisa que só compreendi completamente mais tarde. Acredito que eu tenha visto uns três dias da filmagem, muito interessado, mas não me lembro de ter visto Eisenstein. Mais tarde, já no Brasil, meus pais me levaram para ver o filme no cinema e fiquei espantado ao reconhecer as cenas que vi na escadaria.

Boris Schnaiderman nasceu em 1917, ano da revolução bolchevique, em uma pequena cidade da Ucrânia, mas logo depois sua família foi para Odessa, em função do período de grandes perseguições de judeus na Ucrânia. Eram muito assimilados à cultura russa, a língua falada em casa era o russo.

A sequência que está no coração do filme, o massacre na Escadaria de Odessa, levou duas semanas para ser filmada. Segundo Maxim Strauch, ator e colaborador de Eisenstein, foi a partir de um desenho de uma outra filmagem na escadaria, publicado no jornal francês L’Illustration, que o cineasta teve a ideia da sequência – que não foi um evento real, não aconteceu em 1905. Foi uma (brilhante) dramatização construída também com a ajuda da memória de infância de um incidente semelhante em Riga, onde nasceu Eisenstein.

Esses agenciamentos – referência iconográfica, recuperação de memórias (quase) inconscientes, recriação do evento – são uma das marcas registradas da proposta estética eisenstaniana. Que resultam, em muitas ocasiões, como construções imagéticas tão eficientes que acabam se confundindo com a realidade. Para muitos espectadores, o massacre, pela sua carga simbólica, efetivamente aconteceu.

Sergei Eisenstein tinha 27 anos à época das filmagens.

Encomenda: celebração da Revolução de 1905

“Encouraçado Potemkin”, como praticamente todos os filmes de Eisenstein, foi fruto de uma encomenda do Estado. Foi concebido como um episódio de uma série de filmes que celebravam o aniversário dos eventos revolucionários de 1905, sob o título genérico “O Ano de 1905”. Em 17 de março de 1925 – há pouco mais de 100 anos – foi estabelecida uma Comissão Governamental para comemorar o vigésimo aniversário da sublevação de 1905, considerada um prenuncio da revolução de 1917. A Comissão era composta por personalidades de prestígio: presidida pelo Comissário do Povo para Educação e Cultura, Anatoli Lunachársky, que tinha a reputação de ser um “intelectual entre os bolcheviques e um bolchevique entre os intelectuais”, incluía Kazimir Malevich, o grande artista suprematista; Vsevolod Meyerhold, o inovador diretor teatral a quem Eisenstein posteriormente se referiu como “meu pai espiritual”; Valerian Pletniov, representando o movimento da cultura proletária, Proletkult; Kirill Shutko, do Departamento de Agitprop do Partido; Leonid Krasin, membro do Comitê Central do Partido; e Vasili Mikhailov, Primeiro Secretário do Partido em Moscou.

Eisenstein havia feito seu primeiro longa-metragem, “A Greve”, em 1924, no âmbito do Proletkult – o sucesso artístico do filme o credenciou para o convite. Isso não significa que seu talento era reconhecido por unanimidade. Lunacharsky manifestava dúvidas quanto à narração não-convencional da fita, e Pletniov estava em rota de colisão explícita com o cineasta, levando-o a sair do Proletkult. A questão era a autoria do roteiro de “A Greve”: os dois se desentenderam sobre a atribuição da autoria do roteiro ao coletivo Proletkult como um todo, e trocaram ásperas correspondências sobre o assunto. Pletniov era da opinião de que apenas um proletário poderia dar expressão adequada à mentalidade proletária, rejeitando experimentações mais ousadas como resíduo burguês.

O projeto era sobejamente ambicioso – logo a Comissão concluiu que apenas um episódio seria finalizado a tempo para as comemorações do aniversário, em 20 de dezembro de 1925, os acontecimentos em torno do Potemkin. A permissão para o início só foi concedida em junho de 1925. Eisenstein, Nina Agadzhanova-Shutko (autora do tratamento inicial) e Grigori Alexandrov, assistente de Eisenstein e futuro cineasta de prestígio, trabalharam no roteiro durante a primavera e o verão de 1925. Para esse propósito, foram para uma dacha nos arredores de Moscou, compartilhada entre Kirill Shutkom marido de Nina, e Malevich. O escritor Isaak Babel também se juntou a eles.

Eisenstein argumentou mais tarde que “tinha as minhas próprias exigências de princípio para o roteiro: ausência de personagens heroicas centrais, ênfase na massa, na ação coletiva, e assim por diante”. Os “atores” de Eisenstein foram escolhidos de acordo com os princípios da “tipologia”, classificados com base em suas características comuns, em especial porque tinham a aparência do papel. “Cinema de massas” era o modo como se referia a esse princípio, uma explicação abrangente e popular do que ele entendia como sua contribuição original para a arte cinematográfica, livre de referências complexas em relação à psicologia, fisiologia e marxismo.

Obviamente essa explicação subentendia uma elaborada construção intelectual. Por exemplo, comentando a sequência da escadaria em artigo posterior, Eisenstein escreveu:

Tomemos, por exemplo, a cena em Potemkin, na qual os cossacos descem lenta e deliberadamente os degraus do porto de Odessa, atirando contra as massas. Através de uma composição deliberada dos elementos de membros, degraus, sangue, pessoas, criamos uma impressão, mas de que tipo? O espectador não é imediatamente transportado para o cais de Odessa de 1905; mas, à medida que as botas dos soldados marcham implacavelmente os degraus, o espectador recua involuntariamente, para escapar do campo de tiro. E quando o carrinho da mãe em pânico desce os degraus, o espectador agarra-se convulsivamente à cadeira do cinema, para evitar cair no mar.

1905

Naquele ano de 1905, com efeito, o caldo histórico transbordou. As disfunções da Rússia imperial tinham uma escala absurdamente elevada, um verdadeiro terreno minado. Em 1861, uma reforma agrária emancipou os camponeses da servidão e lançou um programa de aquisição de terras de seus antigos senhores, que ficou pela metade e gerou uma infinidade de atritos. Nas cidades, a política liberal intensificada em fins do século XIX, sobretudo para o setor industrial, expandiu rapidamente a produção, mas defrontou-se com crises financeiras e teve de lidar com um fenômeno social sem precedentes no país, a ascensão do proletariado urbano politizado.

Nas regiões periféricas onde o Império tinha ramificações e fronteiras – Polônia, Finlândia, Países Bálticos, Oriente Asiático –, estava cada vez mais difícil, senão impossível, administrar a polifonia étnica e os impulsos de autonomia. A inesperada derrota para o Japão em exaustivos dois anos de guerra, encerrados em 1905, adicionou à conjuntura a humilhação internacional e a perda de influência na Coreia e na Manchúria. Finalmente, a emergência, ao longo do século XIX, de uma formidável plêiade de intelectuais dos mais diversos matizes – escritores, ativistas políticos e sociais, pensadores, cientistas, artistas, poetas – acelerou inapelavelmente o motor da história e levou ao colapso do Império em 1917.

A revolução de 1905 foi um movimento de massas pulverizado no imenso território russo, com diferentes eventos mais ou menos articulados entre si, não necessariamente progredindo em direção a um objetivo comum. Uma faísca de sublevação chispou espontaneamente em vários lugares e situações, para desespero de Lênin, que pregava o profissionalismo revolucionário como condição indispensável para o sucesso do golpe (para ele, revolução espontânea era amadorismo). Agitações no campo, greves urbanas e motins militares – entre eles o que gerou “Encouraçado Potemkin” – sucederam- se de forma desarticulada e acabaram aterrissando nas mãos inábeis e obtusas do czar Nicolau II.

Um dos estopins da revolta ocorreu em 22 de janeiro de 1905, quando milhares de manifestantes, liderados pelo sacerdote Gueórgui Gapon, foram assassinados ou feridos em frente ao Palácio de Inverno em São Petersburgo, totalmente desarmados, pedindo pão e trabalho ao czar. O episódio – conhecido como “Domingo Sangrento” – foi um dos emblemas lancinantes do absoluto divórcio do soberano com seu povo. Gapon, que conseguiu fugir para a Europa e foi recebido por Lênin e Jean Jaurès, terminou revelando-se informante da polícia e foi enforcado por militantes do Partido Socialista Revolucionário.

Os motins que ocorreram durante de 1905 desempenharam um papel importante em persuadir Nicolau II a publicar seu Manifesto de Outubro, o principal desdobramento político dos acontecimentos daquele ano. Os marinheiros da base naval de Kronstadt eram, há muito tempo, fonte de dissidência radical. Em 27 de junho de 1905, marinheiros do encouraçado Potemkin protestaram contra o fornecimento de carne podre infestada de larvas, descrita enfaticamente no filme de Eisenstein.

O Manifesto de Outubro é o documento que serviu como precursor da primeira Constituição do Império Russo, que foi adotada no ano seguinte, em 1906.  O Manifesto prometeu direitos civis e eleições para um parlamento, Duma, sem cuja aprovação nenhuma lei seria promulgada no futuro.

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Amadurecimento, origens

Serguei Eisenstein iniciou em um agitprop sua imersão no teatro, trabalhando como cenógrafo em uma unidade do Exército Vermelho. Uma das iniciativas bem-sucedidas do período logo em seguida à revolução de outubro de 1917 foi a criação de cinco “trens de agitação”, com dezesseis a dezoito vagões, que zarparam pelo país convulsionado nos primeiros anos da Revolução com fins de propaganda política, levando filmes para serem projetados, folhetos, trupes de teatro, oradores e livros.

Eisenstein assistiu às agitações de julho de 1917 da janela do apartamento de sua mãe, em Petrogrado. Tinha saído há pouco tempo de Riga, capital da Letônia, onde nasceu e morava com o pai, personalidade autoritária e talentoso arquiteto, para estudar engenharia civil (e ir ao teatro). A separação dos pais produziu um trauma profundo no filho único do casal.

Os tumultos se estenderam à Avenida Niévski, quando marinheiros de Kronstadt se juntaram a operários e muitos foram baleados – a cena está seu filme mais ambicioso, “Outubro”, de 1927, mas Eisenstein não presenciou. Tampouco acompanhou a tomada do Palácio de Inverno, em outubro de 1917. No começo de 1918, foi convocado pelo Exército como auxiliar de engenharia e, quando pôde, engajou-se em atividades teatrais, desenhando cenários e figurinos nos trens agitprop. Conseguiu uma vaga para estudar japonês em Moscou, mas a proximidade com o panorama cultural da capital (a partir de março de 1918, os comunistas levaram o governo para Moscou) levou-o ao teatro, como cenógrafo e, em seguida, como diretor, já no Proletkult.

Logo familiarizou-se com a biomecânica de Meyerhold e as experiências cinematográficas de Kulechov. Na sua primeira cenografia, para a peça “O mexicano”, deslocou o ringue de boxe, onde se dava o ato final, do palco para a plateia: já como diretor, em “Estás ouvindo, Moscou”, fez os protagonistas (um Conde e sua amante) entrarem no proscênio em cima de um camelo. Em 1923, estimulado por amigos, resolveu dirigir um entreato cinematográfico para inserir na primeira peça que dirigiu, “O sábio”. O filme – “O diário de Glumov”, com pouco mais de cinco minutos – foi pensado como paródia dos cinejornais de atualidade da Pathé, com acrobacias, palhaços e alpinistas urbanos.

Àquela altura para Eisenstein “o teatro era uma forma de violência psicológica – verificada pela experiência e matematicamente calculada para produzir choques emocionais específicos no espectador”. Nada a ver, portanto, com representação naturalista.

Naquele ano, levado pela amiga Esfir Chub, Eisenstein participa da reedição para o mercado soviético do filme de Fritz Lang, Dr. Mabuse, o jogador. A prática era corrente na União Soviética. Escreveu novos (e ideologicamente corretos) subtítulos, transformando Mabuse em um demônio capitalista. Ficou excitado com as possibilidades da montagem cinematográfica descortinada pelas mãos talentosas da montadora. Voltou ao Proletkult e propôs uma série em oito episódios sobre a tomada de poder bolchevique, intitulada “Rumo à ditadura” (do proletariado, por certo).

Um novo sócio, de uma casa produtora recém-nacionalizada, aderiu ao projeto – sinal da nova conjuntura econômica favorável – o que tornou possível a realização de pelo menos um episódio do projeto inicial, “A greve”, seu primeiro sucesso artístico. Mesclar a cartilha construtivista da composição visual com a tipagem excêntrica de situações e personagens – no roteiro constavam indicações como “um olho de boi flutuando em uma sopa de operário dissolve-se no olho de um capitalista que olha para a câmera” – permitiu ao inexperiente e culto diretor criar uma inédita versão dinâmica, cinemática e trágica da revolução comunista, como sugere uma de suas melhores biografias, escrita por Oksana Bulgakowa.

A principal novidade era o tratamento do trágico – elaborado a partir da exploração dramática da tensão dialética entre operários e classe dominante, culmina na tomada de consciência do proletariado de sua força para fazer a greve e reverter a situação opressiva.

Uma ópera proletária, com heróis coletivos cruelmente dizimados ao final.

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Roteiro, equipe, locações

O poderoso Goskino – nome abreviado do Comitê Estadual de Cinematografia da URSS – havia previsto 250 dias para as filmagens com um elenco de 20.000 pessoas. Em uma entrevista em julho de 1925, Eisenstein observou que “a produção de “O Ano de 1905’ (título provisório) deveria ter uma escala grandiosa, como o filme alemão ‘Os Nibelungos”, de Friz Lang”.

As filmagens foram originalmente planejadas em todo o país, começando em Moscou com takes de interiores e planos de detalhe. O principal, naturalmente, seria rodado em alguma cidade costeira. No início de agosto de 1925, Eisenstein viajou para Leningrado, antiga capital imperial, São Petersburgo, a fim de filmar com 700 figurantes as cenas da greve geral que levaram ao manifesto do Czar de 17 de outubro de 1905. No entanto, chovia incessantemente, a luz natural era fraca demais para as filmagens, a tecnologia de iluminação da época (que incluía o uso de holofotes navais) consumia tanta energia que toda a cidade tinha que ser regularmente mergulhada na escuridão.

O diretor do Goskino, Mikhail Kapchinsky, aconselhou Eisenstein a não colocar todo o projeto em risco persistindo em Leningrado, mas a filmar em Odessa, no sul do país, onde sol era constante e as filmagens poderiam começar com o motim de “Potemkin”. A equipe chegou às margens do Mar Negro em 24 de agosto de 1925. O assistente e amigo de longa data de Eisenstein, Maxim Strauch, sugeriu usar a Frota do Mar Negro, cujos navios eram semelhantes ao “Potemkin” original. Quando chegaram a Odessa, segundo Strauch, foram direto para a escadaria, sem parar para tomar café da manhã. As dúvidas se dissiparam: Odessa seria a principal locação, o potencial cinematográfico da escadaria definitivamente convenceu Eisenstein e seus colaboradores.

Depois de assegurar a presença de Eduard Tisse na fotografia, fundamental para o futuro sucesso do filme, o diretor passou a selecionar os atores. Nem todos os papéis em “Potemkin” foram interpretados por amadores que apenas se pareciam com o “tipo”. Dois dos colegas de Eisenstein no Proletkult desempenharam papéis principais: seu assistente mais próximo, Grigori Alexandrov, interpretou o oficial-vilão Giliarovsky, enquanto Alexander Antonov, por outro lado, interpretou o herói-marinheiro Vakulinchuk. Mas, em sua maioria, a “tipagem” prevaleceu. O seguinte anúncio apareceu em um dos jornais de Odessa:

Para as filmagens do filme de aniversário “O Ano de 1905” (diretor S. Eisenstein), precisamos de modelos com as seguintes características:

1 – Mulher de aproximadamente 27 anos, judia, morena, alta, magra, espirituosa.

2 – Homem, entre 30 e 40 anos, alto, ombros largos, fisicamente forte, rosto russo bem-humorado e franco, uma figura de “tio” como o ator alemão Emil Jannings.

3 – Homem, altura e idade sem importância, tipo bêbado médio, expressão facial insolente, cabelos louros, defeito na disposição dos olhos desejável (leve estrabismo, olhos muito separados, etc.)

O anúncio indica o nível de detalhes com que Eisenstein definia seus “tipos”. A aparência externa e o perfil de comportamento eram os critérios pelos quais os papéis eram preenchidos, fossem atores profissionais ou amadores.

Após a filmagem do massacre da Escadaria de Odessa, a equipe partiu para Sebastopol, onde estava estacionada a Frota do Mar Negro, para filmar as cenas a bordo. O encouraçado original ‘Potemkin’ havia sido desativado em 1919 e desmontado, mas seu navio irmão, ‘Os Doze Apóstolos’, ainda estava ancorado na Crimeia. Infelizmente, ele estava sendo usado para armazenar minas, o que limitou severamente a margem de manobra da equipe de filmagem. Por essas razões, apenas as sequências do convés superior foram filmadas no ‘Os Doze Apóstolos’, enquanto as filmagens abaixo do convés ocorreram em outro navio, o ‘Comintern’, para evitar o perigo de uma explosão fatal.

Uma curiosidade; em um momento do motim um padre ortodoxo aparece no topo da escada e ergue sua cruz ornamentada: “Senhor, revela-te aos indisciplinados”. A aparição do padre neste momento crítico do drama no tombadilho destaca a cumplicidade do cristianismo russo com a autocracia czarista, na qual a Igreja Ortodoxa era governada, como desde a época de Pedro, o Grande, como um departamento de Estado chamado Santo Sínodo. Mas a história de que o padre foi interpretado pelo próprio Eisenstein não é verdadeira: o papel foi, na verdade, desempenhado por um homem desconhecido, escolhido simplesmente porque representava o arquétipo de um velho padre russo, outro exemplo do princípio de “tipagem” de Eisenstein. A versão ganhou relevância porque existe uma fotografia do diretor vestido como o padre, para mostrar ao “tipo” desempenhando o papel o que fazer e como fazer.

Comentários, imagens e montagem

Sergei Eisenstein foi muitas vezes caracterizado como um artista renascentista. Sabemos, através da biografia de Oksana Bulgakowa, do impacto que sentiu ao ler pela primeira vez o clássico estudo de Freud sobre Leonardo da Vinci, “Leonardo da Vinci e Uma Memória de Sua Infância”. Sua curiosidade intelectual e as pesquisas que fazia em torno de cada projeto são um exemplo sem paralelo no mundo cinematográfico. Muitos comentadores sugerem que esse traço leva a crer que o aspecto artístico do cineasta supera o lado político: talvez seja essa a razão da permanência de Eisenstein nos estudos de cinema – ele, a propósito, nunca se filiou ao Partido.

Naturalmente, isso não significa “despolitizar” sua obra, pelo contrário, cada gesto ou enquadramento tem sempre um sentido político, esteticamente falando. Nos anos de 1920 na União Soviética uma referência formidável que se colocava era o construtivismo, um movimento de vanguarda que influenciou diversos campos artísticos, de Vladimir Tatlin a Bauhaus, de Maiakovski a Eisenstein, de Malevich a Rodchenko. Mal resumindo, o construtivismo abolia a ideia de que arte existia separada do mundo cotidiano: deveria, na aurora do século XX, se inspirar nas novas técnicas e materiais modernos com vistas à construção de um mundo socialista. O termo “arte construtivista” foi introduzido pela primeira vez por Malevich para descrever o trabalho de Rodchenko em 1917.

No artigo que escreveu em 1934, 1934, “Sobre a Pureza da Linguagem Cinematográfica”, Eisenstein analisa a sequência que precede o massacre na Escadaria de Odessa da seguinte maneira:

Para demonstrar a interdependência composicional do aspecto plástico das cenas alternadas, escolhi deliberadamente um exemplo aleatório, em vez de uma cena climática: quatorze fragmentos consecutivos da cena que antecede o tiroteio na Escadaria de Odessa. A cena em que o “bom povo de Odessa” (como os marinheiros “Potemkin” dirigiram seu apelo à população de Odessa) enviam barcos com provisões ao lado do navio de guerra amotinado.

O envio de saudações é construído em uma interseção distinta entre dois temas:

1 Os barcos avançam em direção ao navio de guerra.

2 O povo de Odessa acena.

No final, os dois temas se fundem.

A composição se dá basicamente em dois planos: profundidade e primeiro plano.

Os temas dominam alternadamente, avançando para o primeiro plano e empurrando uns aos outros para o segundo plano. A composição é construída:

(1) na interação plástica entre ambos os planos (dentro da tomada)

(2) na mudança de linha e forma em cada plano, tomada a tomada (através da montagem).

No segundo caso, o jogo composicional é formado a partir da interação da impressão plástica do plano anterior em colisão ou interação com o plano seguinte. (Aqui, a análise se dá por signo puramente espacial e linear. A relação temporal rítmica será examinada em outro lugar.)

Em seguida, o diretor examina detalhadamente em termos de composição visual cada plano e a respectiva interação, num total de 14 blocos, inclusive com croquis para cada tomada principal de cada bloco.

E conclui:

Não se deve pensar que tanto a filmagem quanto a montagem dessas sequências foram feitas de acordo com tabelas calculadas a priori. Claro que não. Mas a montagem e a inter-relação desses fragmentos na mesa de edição foram claramente ditadas pelos requisitos composicionais da forma cinematográfica. Esses requisitos ditaram a seleção desses fragmentos dentre todos os disponíveis. Eles estabeleceram a regularidade da alternância entre as tomadas. Na verdade, esses fragmentos, se vistos apenas do ponto de vista do enredo e da história, poderiam ser arranjados em qualquer combinação. Mas o movimento composicional através deles dificilmente se provaria, nesse caso, tão regular em construção.

Não devemos reclamar da complexidade desta análise. Em comparação com a análise da forma literária e musical, minha análise ainda é bastante óbvia e fácil.

Esta sequência funciona como um intervalo idílico entre a elegia das cenas de luto por Vakulinchuk, marinheiro morto na sublevação do Potemkin, e a violência da sequência da Escadaria de Odessa. – é a calmaria antes da tempestade que se aproxima. Também nos apresenta alguns dos principais personagens que povoam a Escadaria, como a mulher conhecida como “a professora (graças à tipologia eisensteiniana, ela se parece com uma) e o menino deficiente. Em meio à calmaria, esses personagens representam um Vorschlag – termo utilizado por Eisenstein – ou seja, a tempestade que está prestes a desabar.

Estrutura dramática

Eisenstein escreveu no seu diário em 30 de julho de 1934:

O paradoxo de Potemkin reside no fato de que os estágios sucessivos no desenvolvimento épico dos eventos aparecem ao mesmo tempo como elementos na sequência correta de ações, de acordo com o modelo clássico de tragédia: mais precisamente, no fato de que foram tomados e ouvidos a partir dos eventos como eles aconteceram. É um erro pensar que a história é assim, ou que “a história é inerentemente dramática”. A história é sempre dramática, mas neste caso há uma enorme mudança em nossa atitude em relação à história e é somente por essa razão que o épico parecia simultaneamente ser uma “tragédia clássica”.

Eisenstein utilizou essa estrutura clássica para produzir o que se tornou o exemplo clássico do cinema revolucionário.

As cinco partes do épico são:

Parte 1: Homens e Larvas

Parte 2: Drama no Convés

Parte 3: Um Apelo dos Mortos

Parte 4: A Escadaria de Odessa

Parte 5: Encontro com o Esquadrão.

Richard Taylor, um dos principais exegetas da obra de Eisenstein, resumiu da seguinte maneira o desenvolvimento dramático do filme:

Cada parte do filme transita de um clima passivo para um ativo. Na Parte 1, a atmosfera predominante de resistência silenciosa transita para uma resistência ativa à carne podre; na Parte 2, a mudança é da submissão e aquiescência à execução proposta para o motim; na Parte 3, do luto pelo marinheiro morto para a raiva e mobilização; a Parte 4 evolui de demonstrações pacíficas de solidariedade entre os habitantes da cidade e tripulantes, passando pelo massacre na Escadaria de Odessa até o encouraçado disparando seus canhões com raiva contra o quartel-general militar; a parte final do filme transita da incerteza e insegurança sobre a reação da frota que se aproxima ao triunfo e a fuga para a segurança enquanto o encouraçado navega pela frota sob o acompanhamento de aplausos.

Essa estrutura garante que cada parte do filme contenha as tensões envolvidas no embate dialético entre tese e antítese, que se resolve em uma síntese conclusiva que avança a ação para o próximo estágio. Embora a sequência da Escadaria de Odessa seja a parte mais famosa de Potemkin e constitua seu cerne emocional e ideológico, ela se passa no final, e não no centro temporal, do filme. Mas não se passa no final do filme: a tragédia emocional é seguida por um aparente triunfo emocional.

A sequência da escadaria

A “Escadaria de Odessa” é uma monumental escadaria na cidade de Odessa, Ucrânia. É considerada como a entrada oficial da cidade para quem vem do Mar Negro. Foi nela que Eisenstein filmou a sequência que entrou para a história do cinema – e que constitui o coração de seu filme, “Encouraçado Potemkin”.

A escadaria teve seu nome mudado para Potemkin em 1955 para comemorar os 30 anos de aniversário do filme. Com a independência da Ucrânia em 1992, foi reinstaurado o nome original de Escadaria Primorsky, nome, aliás, de muitas ruas de Odessa.

A largura dos degraus é de 12,5 metros no ponto superior, os degraus vão seu gradativamente mais largos à medida que descem e no sopé o degrau tem largura de 21,5 metros. Sua extensão é de 142 metros e, vista de baixo, parece ser ainda mais longa, por uma ilusão de ótica. São 192 degraus com 10 patamares intermediários. Sua concepção é tal que um observador no alto da mesma vê somente os patamares, não percebendo os degraus, enquanto que de baixo são vistos somente os degraus

A descrição física da escadaria já é em si uma análise de composição cinematográfica. Todos esses aspectos, em particular a própria declividade natural da escadaria, foram realçados na montagem de Eisenstein, de modo a provocar no espectador uma “emoção patética” acerca da violência repressora do Czar. Os cidadãos de Odessa se reúnem nas Escadarias de Potemkin para saudar e mostrar seu apoio aos amotinados a bordo do navio de guerra. Logo, um grupo de soldados se materializa no topo da escada e começa a atirar em homens, mulheres e crianças inocentes, descendo em formação militar as escadas enquanto massacram a multidão em fuga.

As cenas são articuladas por meio de mudança de ritmo constante, sequências longas e prolongadas para tomadas rápidas, mantendo assim os espectadores desequilibrados. A direção do movimento da câmera e da multidão também varia, enfatizando o conflito entre as imagens, entre closes e planos diagonais, entre estupor e desespero da população. O conflito também impregna cada plano individual, como o corpo do garoto esparramado, perpendicular às sombras dos degraus.

Uma tal estratégia de montagem reforça a desorientação e o caos do que se passa. Não obstante, a gravidade provocada pelo declive da escadaria segue presente, fornecendo um sentido para o massacre que se passa na tela. Movimentos contrários – como a mãe desesperada que se afasta do carrinho do seu filho e parte em direção aos fuzis da repressão – interrompem o fluxo, mas são logo superados. E o carrinho desce os degraus, abandonado.

A sequência termina com o navio de guerra respondendo ao massacre, disparando contra a cidade. A rápida montagem das três estátuas de leão – em rápida sucessão, como se estivesse vivo e reagindo ao conflito – encerra o bloco. Leão dormindo, desperto e rugindo, num mesmo movimento, agora ação e reação, portanto ideia de transformação.

“Encouraçado Potemkin” – e sobretudo a sequência da escadaria – produziu um choque inédito na audiência pelos planos de violência gráfica, que impactam até hoje. Para Eisenstein, tratava-se de conquistar a empatia do público e leva-lo a apreender o contexto da ação, por meio da revolta. O choque proporcionado pela manipulação da montagem levantaria o véu da cortina ideológica que cobre a realidade da qual os espectadores estão alienados.

Em artigo recente, Fernão Ramos detalha o recurso da seguinte maneira:

É pela emoção patética que podemos penetrar na objetividade social levados pela mão que constrói, como representação, o choque que a compõe intrinsicamente a estrutura de síntese que coroa a dialética marxista da história. Esta deve mover também o particular na obra de arte revolucionária. Do particular ao geral, do geral ao particular, é a concepção do mesmo grande movimento dialético que gere o cosmos e a história.

O conceito de ideologia, como véu do pensamento que impede o encontro pleno com o objeto exterior encoberto na reificação (momento caro à reflexão marxista), ocupa aqui um lugar central. Lugar que revela sua posição ao ser descontruído pelo abre-latas da empatia no salto dialético das emoções levantadas pelo choque entre-planos e, mais que isso, pelo pathos extremo propriamente, construído nos saltos deste choque. É no movimento do salto qualitativo da dialética das emoções, até a dimensão do fora-de-si, que germina a nova consciência esclarecida do construtivismo patético de Eisenstein, se assim podemos chamá-lo. É pelo patético que se abre a consciência da experiência prática desreificada, pronta para o engajamento.

Cenas violência nunca vistas, reações

A sequência da escadaria de Odessa, com uma violência dramatizada jamais vista no cinema, foi montada com fluxos contraditórios de movimentos ascendentes e descendentes, ritmos dissonantes de soluções para cada um dos planos e um ordenamento espacial que reforça a autoridade e o arbítrio da autoridade repressora. Mas a sofisticação de Eisenstein não obteve o sucesso de público esperado, à época do lançamento, em Moscou.

A exibição inicial estava marcada para 21 de dezembro de 1925, um dia antes do aniversário de vinte anos do início da Revolução de 1905, conhecido como “Domingo Maldito. A fase final da produção, entre Moscou e Odessa, foi, como seria de se esperar, uma verdadeira roda-viva: restrições de toda ordem convenceram a todos, diretor e Goskino, que o filme deveria concentrar-se no motim do encouraçado. Menos de um mês antes de sua estreia, “O Ano de 1905”, título do roteiro original, finalmente se tornou “Encouraçado Potemkin”.

Nas últimas três semanas antes da estreia, Eisenstein teve três semanas para transformar mais de 4.500 metros de filme na versão final de cerca de 1.850 metros. Enquanto Tisse carregava os primeiros rolos para a caixa de projeção no Bolshoi, Eisenstein ainda estava colando os últimos rolos na sala de edição, de modo que Alexandrov teve que transportá-los para o teatro em sua motocicleta. O diretor chamou a primeira apresentação de “milagre no Teatro Bolshoi”.

Em 18 de janeiro de 1926, Potemkin estreou em dois cinemas no centro de Moscou, Metrópole e Arte, este último também conhecido como o Primeiro Teatro Goskino. Ambos os cinemas eram decorados como navios de guerra e toda a equipe usava uniforme naval. A partir de 19 de janeiro, mais uma dúzia de cinemas programaram o filme, saudado pelo “Pravda” como o orgulho do cinema soviético. Simultaneamente, foi lançado em Moscou a película norte-americana “Robin Hood”, com Douglas Fairbanks.

As estatísticas são confusas, mas em 16 de fevereiro Potemkin foi retirado de cartaz, enquanto “Robin Hood” ficou até o verão. Esse era um fato relativamente comum na década de 1920: os filmes soviéticos canônicos das cinematecas tiveram recepção de público inferior não apenas em relação aos importados, mas também comparados à produção soviética de consumo popular do período. Por exemplo, o maior sucesso na década foi “O casamento do urso”, também de 1925, dirigido pelo ator Konstantin Eggert e o veterano Gárdin a partir de peça de Lunatchárski, o Comissário de Educação e Cultura. O enredo, com tintas românticas, traz um jovem nobre meio-homem meio-urso, na linha temática dos lobisomens. Eisenstein e a crítica engajada abominaram o filme, tido como reprodução espúria do cinema burguês importado pela URSS, em uma palavra, reacionário.

“Encouraçado Potemkin” parece ter tido melhor sorte no circuito de cinema dos trabalhadores, onde as instalações eram mais simples e os preços dos ingressos, mais baixos. Mas, em cinemas comerciais, onde as pessoas tinham que pagar mais por seus ingressos, ele teve que ser vendido com algum esforço. Ficou menos tempo em cartaz do que a produção anterior, “A Greve”.

As reações foram eufóricas na imprensa soviética, mas entre amigos e pessoal de cinema foram ambíguas. Em março de 1926, Dziga Vièrtov proferiu discurso violento contra Eisenstein na ARK (Associação de Cinematografia Revolucionária) – ele já havia acusado Eisenstein de de copiar procedimentos do seu grupo Cine-olho. A resposta veio rápida: “Em lugar do cine-olho, precisamos do cine-punho”, escreveu o realizador de Potemkin.

Lunatchárski achou o filme vago, “sem enredo”. Em debate na ARK, o militante construtivista Aleksei Gan julgou que Eisenstein não tinha focado no processo, como seria de esperar de um verdadeiro construtivista, produzindo um “resultado eclético”. Kulechov não viu méritos especiais na montagem, recusando-se a admitir que Eisenstein tinha aprofundado radicalmente suas próprias noções de montagem. Abram Room, psiquiatra que se engajou no grupo de Meyerhold e depois na realização cinematográfica, negou qualidades artísticas ao filme, para ele, “incapaz de lidar com vidas de seres humanos”.

Em Berlim, foi diferente. Potemkin foi exibido pela primeira vez na capital alemã em 21 de janeiro de 1926, três dias após seu lançamento em Moscou, em uma cerimônia em memória de Lenin, que havia falecido dois anos antes. O evento foi organizado por Willi Munzenberg, o principal organizador e propagandista comunista alemão – e a repercussão foi imediata. O público era composto por trabalhadores e intelectuais de esquerda. Em março estreou nos cinemas e logo obteve enorme repercussão por onde passou, em especial junto a artistas e intelectuais.

Logo “Encouraçado Potemkin” tornou-se um evento de referência cultural na capital alemã, impressionando personalidades como Walter Benjamin e Bertolt Brecht. Eisenstein e Tisse viajaram para a Alemanha a fim de participar de debates e encontros. Munzenberg criou uma empresa, a Prometheus-Film, especificamente para contratar das autoridades cinematográficas soviéticas os direitos de distribuição alemães do filme – do qual comprou o negativo. Douglas Fairbanks e Mary Pickford, àquela altura não apenas a “queridinha da América”, mas também da Rússia Soviética, também ficaram empolgados com Potemkin.

O jornal do Partido Comunista Alemão, “Die Rote Fahne”, relatou:

Fairbanks disse que “O Encouraçado Potemkin é a experiência mais poderosa e profunda da minha vida”, enquanto Mary Pickford deu suas desculpas porque não estava em condições de dizer nada. O filme havia causado uma impressão tão forte que ela estava chorando.

A carreira internacional foi um acúmulo de elogios. Chaplin disse que era o “melhor filme do mundo”. O produtor de Hollywood, David O. Selznick, descreveu Potemkin como “inquestionavelmente um dos maiores filmes já feitos, sua reprodução vívida e realista de um pouco da história é muito mais interessante do que qualquer filme de ficção; e isso simplesmente devido à genialidade de sua produção e direção”.

 

Censura e canonização

“Encouraçado Potemkin” veio à luz esbarrando em encruzilhadas políticas. A versão inicial incluiu uma citação de Leon Trotsky do seu livro “1905”, que dizia: “O espírito da revolta varreu a terra” e “Um processo misterioso e tremendo estava ocorrendo em inúmeros corações”.

Trotsky já estava indisposto com Stalin. Foi expulso do Partido em 1927 e enviado para o exílio interno em 1928, logo transformado em externo. Em seu lugar entrou um excerto de Lênin: “A revolução é a única guerra legítima, igualitária e eficaz. Foi na Rússia que esta guerra foi declarada e iniciada.” Nas imagens, uma tempestade se forma no horizonte, a revolução é iminente.

Entronizado por cinematecas e amantes do cinema em todos os países em que foi exibido, “Encouraçado Potemkin” é o ponto alto do grupo de filmes que entrou para a história como o “cinema revolucionário soviético” – um pacote de filmes brilhantes produzidos na década de 1920, canonizados em uma mitologia que os torna quase atemporais. Muitas das imagens que supomos como autênticas da Revolução em Petrogrado (nome dado a São Petersburgo no começo da guerra, em 1914), no mês de outubro de 1917, são artificiais, idealizadas dez anos depois por olhos argutos como os de Eisenstein e Pudóvkin.

Se Potemkin entusiasmou boa parte da audiência, também foi capaz de provocar ansiedade e medo, em última análise, censura. Na Alemanha, onde começou sua brilhante carreira internacional, foi objeto de intensa polêmica, criticado pelos militares e políticos de direita, levando a cortes arbitrários na película antes da exibição. Na Inglaterra, França e Estados Unidos, devido a preocupações semelhantes com o potencial de revolta, passou temporadas na prateleira dos órgãos de censura.

No Brasil, foi censurado durante a ditadura militar, por seu conteúdo político, sobretudo pelo potencial de instigar revolta e rebelião em soldados e marinheiros brasileiros. A exibição foi proibida por cerca de 16 anos, voltando a ser exibida em circuito comercial em 1980.

“Encouraçado Potemkin” foi visto e apreciado pelos “fuzinautas”, como eram conhecidos os membros da Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB), que dias depois protagonizaram a “Revolta dos Marinheiros”, de 25 a 27 de março de 1964. Foram sitiados no Sindicato dos Metalúrgicos, e a crise propagou ao Arsenal de Marinha e navios da Armada. O desfecho, negociado pelo governo de João Goulart, indignou os militares que perpetraram o golpe de Estado poucos dias depois.

Apesar dos percalços, Potemkin se impôs – são incontáveis as listas de melhores filmes de todos os tempos em que se faz presente, sem falar nos ensaios críticos de que foi objeto, em inúmeras línguas. Concorre para esse feito o contexto revolucionário da União Soviética, sempre um campo fértil de estudos, mas sobretudo a personalidade exuberante de Sergei Eisenstein, um artista excepcional, um dos maiores do século XX.

Eisenstein faleceu em 1948. Tinha recém-completado 50 anos de idade.

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