Orlando
A metafísica do processo de aceitação
Por Fabricio Duque
Virginia Woolf publicou em 11 de outubro de 1928 o romance “Orlando: Uma Biografia”, baseado em parte na história com seu amante Vita Sackville-West. Em 1992, o livro foi adaptado ao cinema pela diretora Sally Potter e estrelado por Tilda Swinton. A obra é uma sátira aos métodos convencionais dos historiadores sobre um jovem inglês que nasce na Inglaterra da Idade Moderna e, durante uma estada na Turquia, simplesmente acorda mulher e dotada de imortalidade.
E eis que então, em 2012, o realizador brasileiro Alexandre Rudáh (diretor artístico e audiovisual na A.RUDÁH filmes) recria um olhar único e particular ao construir uma livre adaptação em “Orlando ou um impulso de acompanhar os pássaros até o fim do mundo”. Uma experiência sensorial de imersão total e que mitiga ao público toda e qualquer possibilidade de se refugiar em alguma zona de conforto. Sim, nós somos convidados a adentrar em uma epifania pela narrativa descontínua de um imagético fluxo de consciência. Nesta versão, Orlando é encarnado(a) pela atriz Patrícia Niedermeier, que aqui sente a inicialização de seu primeiro papel na arte cinematográfica (segundo dados do IMDB).
“Orlando ou um impulso de acompanhar os pássaros até o fim do mundo” é o acompanhamento da odisseia de uma transmutação. Uma metafísica importada do interno. Da exposição urgente de mostrar ao mundo o que se é na essência. De um querer-fantasia transformado em realidade. De um pássaro negro à vivência das cores, gestos, pessoas e prazeres.
O longa-metragem mergulha na personificação dos efeitos alucinógenos, uma reação acidulante de transporte, intensificado pelo estroboscópio (dispositivo óptico que permite registrar o movimento contínuo ou periódico de elevada velocidade de um corpo, com o objetivo de o fazer parecer estacionário) e pela trilha-sonora de um mantra-transe à moda de uma Bjork mais xamânica, mais vanguardista e mais naturalmente indígena, como se fosse um reencontro com a ancestralidade, antes adormecida. Uma música bizantina de canto gregoriano estilizado em samples.
Sim, este é exatamente o que o diretor argentino Gaspar Noé faria se resolvesse fazer uma versão de Orlando, que por sua vez já utilizou a luz estroboscópica em “Viagem Alucinante” (2009), permitindo assim determinar a frequência de rotação de corpos.
O exercício de linguagem de “Orlando ou um impulso de acompanhar os pássaros até o fim do mundo” também pode ser uma alucinação determinista da escritora britânica, complementada pelas ideias da artistas Ana Mendieta (cubana e refugiada nos Estados Unidos) e e do artista Bas Jan Ade (conceitual e performático holandês). Aqui, a arte pulsa latente e de expressão visceral. É uma estranha e disfuncional fábula moderna, quase uma parábola, que encontra Derek Jarman, Christopher Honoré e a falta de ordem de Jean-Luc Godard. É uma orgia visual. Um orgasmo com a terra. Com a mais primitiva e selvagem das faculdades mentais.
Entre fotos antigas em rodantes loop, “ideias sobre poetas extravagantes e absurdas”, tons de “verde”, literatura, “transitoriedade”, “corações incertos que pareciam cheios”, “calças russas”, “incandescência”, “morte em pequenas doses”, “fidalgo aflito”, “empresa da vida”, “olhos oblíquos” “quebra de métrica”, homem, infância e mulher, o longa-metragem desenvolve poesia e ação. Uma revolução de palavras, em busca da “verdade e somente a verdade”, que são cheias de “ecos, memórias e associações, mais selvagens, mais livres, mais irresponsáveis e mais inapreensível de todas”, presentes nos “dicionários em ordem alfabética e democráticas”. “A razão de não ter crítico escrevendo hoje é que nos recusamos a dar as palavras sua liberdade”, narra-se com incômoda resignação. “O que tem a ver sete edições com o valor do livro?”, pensa-se.
“Orlando ou um impulso de acompanhar os pássaros até o fim do mundo” é sobre a natureza da vida e morte. Da revolta contra a imortalidade. De lutar pelo direito de não mais existir. Os exercícios vocais mudam em um alucinante tecno quando Orlando aos “trinta anos se torna uma mulher” e comemora a assustadora “libertação” civilizatória em uma boate, sendo livre (com diversão, pegação e com o solitário silêncio da “ressaca” moral pós bebedeira – de metalinguagem ao nos encarar e de câmera mosca a captar a espontaneidade do momento-conversa) e não mais uma definição em letras. “É a isto que chamam de vida?”, a eterna narradora, talvez a deusa divina, questiona-se. Orlando é a “noiva da natureza”, que deita com esqueletos, mortos no físico e projetados no enxergar. O filme é uma crítica à humanidade, a esses Homens que se perdem na própria tradução de suas vidas. “Estou quase compreendendo!”, finaliza-se, mas deixando a retórica de que nunca, jamais, conseguiremos definir o que é o viver.
Toda a maestria de “Orlando ou um impulso de acompanhar os pássaros até o fim do mundo” é descoberta por isso, pela forma condutora despretensiosa de uma videoarte com estética e narrativa de cinema. Que nos tira completamente de nossas zonas de conforto. Que se liberta das palavras e da necessidade do sentido, mantendo-se fiel ao conceito vertiginoso de estender tempo sensorial, espaço congelado e contemplação transgressora, que apenas deixa a imagem ser o que quiser por si só. Sim, é uma obra para se assistir na tela grande com som alto. Uma terapia cognitiva de aceitação pela particularidade de um diretor que não se deixa padronizar e de uma atriz com entrega absoluta sem o medo do retorno à realidade. E o que é mesmo ser ficção se não um técnico espelho de nós mesmos… Continua…
4 Comentários para "Orlando"
Emocionada com a beleza do texto de Orlando. Obrigada Vertentes pelo brilhante texto!
Obrigada Vertentes pelas belíssimas criticas e o profundo olhar sobre meu trabalho.
Patrícia Niedermeier é para mim uma das melhores atrízes da época atual.Ela se entrega a serviço do personagem de uma forma,que o espectador seja no cinema ou no teatro é seduzido pelo seu talento e encantamento. Eu sou sua fã e admiradora da pessoa que ela É.
ALEXANDRE, A PATRICIAFICOU MUITO BEM EM CENA.PARABENS À VOCÊS.