Onde Fica Esta Rua? Ou Sem Antes Nem Depois
Retrato fantasmagórico de uma Lisboa em seus anos maduros
Por Paula Hong
A iminência da possibilidade do fim dos tempos tende a suscitar revistas ao passado. Os momentos de suspensão obrigatória da vida caótica urbana permitem a contemplação e especulações nostálgicas do que já foi, e do que pode ser. Assinado pela dupla portuguesa João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, “Onde Fica Esta Rua? Ou Sem Antes nem Depois” retrata sua amada Lisboa sob a influência do olhar de Paulo Rocha, um dos maiores cineastas localizado dentro do Cinema Novo Português. Durante o período de isolamento no momento pandêmico ao redor do mundo, eles estão inquietos pela pergunta, “Será que os teus avós [de João Pedro] estavam a assistir da janela quando Isabel Ruth e Rui Gomes, a Ilda e o Júlio de “Os Verdes Anos”, dão pela primeira vez a mão”. Assim, a obra faz o recorte de um centro urbano ausente do movimento frenético de transeuntes, retratando uma sinfonia urbana que parece querer apresentar a Paulo Rocha o que Lisboa se tornou.
No começo do filme, vê-se o pedaço de uma mão e outro de uma perna largadas no mato amarelo-queimado que parecem atestar a carência diegética de presença humana. Embora raramente vista durante a obra, ela é sempre sentida e ouvida, dentro ou fora de quadro, seja por noticiários que atualizam a situação pandêmica, pelas músicas — um dos pontos mais fortes do filme — ou por passos de rostos mascarados, mas nem sempre, que musicalizam os chãos de concreto e paralelepipédicos de Lisboa. Embora coloquem “Os Verdes Anos” como ponta de partida, sobretudo por visitarem as locações originais do filme de forma quase tão fidedigna quanto Paulo Rocha fez, João Pedro e João Rui colocam a câmera como um fantasma que transita sem rumo, e que leva seu tempo para registrar as interferências sofridas pela cidade durante os anos.
Se antes os anos eram verdes, agora eles são maduros. A cidade já não é a mesma e tampouco é a juventude que a ocupa. Em “Onde Fica Esta Rua? Ou Sem Antes nem Depois”, o gesto da conexão entre passado e presente se dá — para além da inspiração fílmica do qual provém — pela lenta passagem do tempo, dilatado pela calma com que a câmera quase fixa o olhar. A escolha pela textura da película de 16mm reforça a estética nostálgica do filme. Os olhos de quem observa Lisboa são do passado, apesar de estarem localizados no presente. Por vezes, a câmera para em locais onde normalmente haveria alguém. São nesses momentos que somos permitidos imaginar ou projetar a beleza que reside na vida cotidiana: alguém que, sentado à mesa, toma café, lê um jornal; alguém que empurra a porta de um estabelecimento; alguém que trabalha num escritório; alguém que observa Lisboa da janela de um apartamento, sobretudo à noite. Os diretores permitem aos espectadores extrair das imagens a própria narrativa ao passo que constroem a sua. E exceto pelas presenças passageiras dos diretores, a icônica aparição de Isabel Ruth, que interpreta Ilda em “Os Verdes Anos”, numa espécie de musical-solo, é elusiva ao remonte desse passado repleto de saudades frente ao futuro incerto que enfrenta. Conjuntamente, eles declaram seu amor à cidade — com saudades do que já foi e reticentes ao que poderá ser.
O contexto pandêmico permitiu que a obra pudesse ser construída de modo que nós não fôssemos constantemente estimulados por eventos narrativos de causa e efeito entre eles. Ao contrário, é uma experiência que vai na contramão dos modelos clássicos de outros filmes. No entanto, essa sinfonia sem aparente conclusão mostra-se, por vezes, monótona. Não é tão fácil acompanhar essa proposta, quase como um convite proposital ao relaxamento corporal e mental, permitindo ser levado pelo sono advindo da grande gama de abstração da obra. Às vezes pode parecer um teste de resistência ao nosso ímpeto de sermos bombardeados com distrações imagéticas, como em “Fogo-Fátuo“, também dirigido por João Pedro. Mas em contraste à própria proposta, em alguns momentos os diretores brincam com a movimentação brusca da câmera depois de um tempo estagnada, como se, de repente, algo instigante e inesperado aconteceu para romper com o registro e contemplação dos retratos urbanos, como se alguém estivesse dando sinal de vida e estivesse à procura de interação.
O documentário reflete sobre um passado em que a ebulição jovial, tão característica da Nouvelle Vague francesa que, apesar da breve aparição na história do cinema, deixou posicionamentos e marcas que dispersaram fronteira afora. Impelidos por inquietações, os diretores exercitam uma comparação entre passado, passado e futuro de forma lírica e sem — ou quase nenhuma — intervenção. A montagem desse mosaico nostálgico se dá através de paisagens esvaziadas de presença humana, mas apoiada em um desenho musical que consegue gracejá-las e texturizá-las, seja de modo melancólico ou não. E por essas ausências somos permitidos observar e contemplar a maturidade de um tempo encontrada nos detalhes.