On The Rocks
Partículas do invisível com gelo
Por Fabricio Duque
Apple TV+
Entrando no mundo das produções originais das plataformas digitais, o mais recente filme da realizadora Sofia Coppola, “On The Rocks” (2020), que estreia na Apple TV+, não só corrobora a característica principal de sua diretora, que é a naturalização da mise-en-scène (espontânea e integrada com o ambiente vivido, trazendo uma atemporalidade ao moderno – como uma sensação de nostalgia presente), como expande sua diversidade narrativa, neste caso, de importar de forma única o universo de Woody Allen (quebrando moralidades e politicamente incorretos com ironia agridoce, pululando diálogos com uma inocente graça amadurecida).
“On The Rocks” desenvolve-se pelo realismo fabular das situações awkward, que conduzem constrangimentos em comédia, desprendida de sensibilidades. Seus personagens participam cúmplices de embates espirituosos. Assim, o personagem do pai (interpretado pelo ator Bill Murray, que protagonizou “Encontros e Desencontros”, um dos filmes anteriores de Sofia) pode ter a liberdade, não patrulhada, de se comportar como um típico machista e “sortudo”. “É muito bom ser você”, diz a filha.
Outra particularidade da realizadora é filmar a sensação de tempo invisível. Nós sentimos a pausa da realidade (entre o olhar da projeção do que se quer encontrar e a verdade factual), principalmente por seus atravessamentos do zoom, que fornecem um tom espreitado do observar, como um detetive particular amador que se perde em sua arte de se esconder. Nós adentramos na semente da discórdia plantada, desencadeando imaturas e passionais reviravoltas desengonçadas. E embarcamos nas desventuras investigativas de encontrar pistas e provas. Tudo traduzido por uma edição cotidiano, que acontece na velocidade da genuína ação contemporânea.
“On The Rocks” é também um filme que busca integrar orgânica e habitualmente a inclusão social entre negros e brancos, quando não se aborda em nenhum momento a problematização da segregação racial. Aqui, o casamento, os filhos e a família não são questões e sim o lado “primitivo” dos homens, animais instintivos e descontrolados no momento em que qualquer mulher passa por eles. O roteiro, ao desconstruir esses limites e criticar com o humor, acaba os embasando, humanizando e permitindo que sejam falhas adolescentes e não estruturas condicionadas. É, acima de tudo, um grande stand-up coloquial de comédia da vida privada, só que exposta e vulnerável nas ruas da cidade.
Sofia tempera nesta importação woodyalleniana uma naturalista sofisticação da criação pelo equilíbrio ritmado da forma (embalagem) e conteúdo (trama). Ainda que algumas cenas aumentem o tom caricatural, como a de uma “tocaia” com caviar na torrada; a saída magistral pela manipulação afetiva do policial; os gatilhos comuns detalhistas que buscam confundir o espectador com falsas pistas; a “mãe amiga” da escola da filha que não escuta e só fala; a artificialidade das conversas “monólogos”; a festa “deixada de lado” do trabalho do marido (o ator Marlon Wayans, que traz ranços do cinema pastelão); ainda assim, nós somos conquistados a ficar e a querer descobrir qual o próximo passo. Talvez pela ambiência semelhante de cotidiano novaiorquino auto-analítico e/ou pela condução particular de sua diretora e/ou pela fotografia de Philippe Le Sourd (de “O Grande Mestre”, de Wong Kar-Wai; “Um Bom Ano”, de Ridley Scott) e/ou pela já tradicional música do grupo Phoenix.
“On The Rocks” pode soar como uma obra mais urgente e com tipicidade televisiva. E que tenha gelo demais neste whisky, talvez até um pouco aguado. Sim, mas não é por completo. Dentro de toda essa teatralização da naturalidade, o filme encontra substância suficiente para existir. E beber. E dançar. E transgredir por um pai rico que com poder, perspicácia e conhecimento conhece bem as artimanhas e funcionamento do mundo em que vive. Com ou sem assobios.
Na entrevista à revista Vogue, em 11 de outubro de 2020, Sofia disse como encontrou sua história. “Uma amigo me contou uma história. Seu marido estava viajando muito com uma colega de trabalho e ela realmente foi espioná-lo com seu pai. Eles estavam se escondendo em arbustos. Ouvindo isso, pensei que adoraria ver um filme detetive de pai e filha. Eu amo os filmes de The Thin Man (“A Ceia dos Acusados”, 1934, de W.S. Van Dyke, por exemplo), então eu queria fazer algo assim. E então, você sabe, eu também estava pensando sobre meu relacionamento com meu pai e ter meus próprios filhos, e como isso afeta você. Comecei a escrevê-lo há cinco anos – talvez mais – então também se falou muito sobre os homens dessa geração [o personagem de Murray tem 70 anos] e o confronto, especialmente, com as mulheres da minha geração. Eu queria montar algo que fosse leve e divertido, mas no fundo estava conectado a isso”, finaliza.