Oito e Meio
Um vendedor de ilusões
Por Fabricio Duque
O diretor Federico Fellini apresenta-se como um vendedor de ilusões. Suas obras utilizam o imaginário real para expressar a inerência dos seus personagens. Os atores vivenciam atores da ficção e ou da realidade, criando a metalinguagem dos quereres
projetados. Os desejos e ou preocupações, típicas das vivências e escolhas, possuem um exagero, uma necessidade de expurgar “fantasmas” do passado, abusando da fantasia e da imaginação para libertar a alma com a catarse da quase loucura.
A linguagem de utilizar o cinema como história para transmitir o roteiro criado por um diretor análogo com frustrações, pressões e precisando fornecer idéias e obras aos produtores reais é muito peculiar na visão deste diretor.
“Oito e Meio” divaga sobre este universo. As limitações da arte gerando as mazelas pessoais, confundindo-se a trama cinematográfica com o filme da própria vida. Uma das principais obras de Fellini, considerada a mais pessoal tanto por seu estilo como por seu tom autobiográfico. O cinema italiano transpassa a característica de que os personagens acostumam-se com o seu próprio ser. Eles resignam-se no que são, vivenciam ao extremo o que são, mas existe a percepção clara do que fazem e de como agem, fazendo desta artimanha uma falsa carência, para que seja suavizado o estado bruto de seus interiores. Os sarcasmos agressivos e as picardias infantis demonstram a defesa de se mostrar um outro sentimento. Sempre ao contrário. “Beba água devagar, vai ficar inchada”, diz-se diretamente, sem rodeios.
“Oito e Meio” aborda a vida de Guido Anselmi (Marcello Mastroiani), o alter-ego de Fellini, um cineasta incomodado pelo próprio sucesso e passando por uma crise de criatividade. Ele precisa terminar um filme, mas não tem novas idéias nem motivação. E também não tem sossego, pois é procurado a toda hora, principalmente por pessoas à procura de trabalho. Enquanto procura uma saída, se embaralham em sua mente recordações de sua infância, reflexões sobre seu casamento em crise, sobre o relacionamento com sua amante, sua família e amigos, em uma narrativa fragmentada e entremeada de surrealismo, quase amador, como pessoas saindo ou entrando de cena, como a rumba de Saraguina e a revolta das mulheres de sua vida.
Os elementos, em detalhes e de forma sutil, do engarrafamento, dos barulhos acentuados e intermitentes, do abafamento, da falta de ar, dos olhares subjetivos alheios explicitam a metáfora do esgotamento causando a dor física. O desejo da liberdade pura, simples e ingênua, do mesmo tipo de sua infância. Tenta resgatar a pureza daquele tempo. Os pesadelos e ou sonhos perdem-se no passado e presente, um misto da memória, do abismo do desespero, frustrações e perda da capacidade de criação. “O que você prepara para nós? Mais um filme sem esperança?”, pergunta-se a ele, aumentando o estágio o qual se encontra. A produção cada vez mais esquizofrênica. A loucura do aumento do poder faz dizer “Eu comprei a sua desordem, a sua crise”.
A fotografia em preto-e-branco de “Oito e Meio”, como sendo uma fotografia interativa em movimento, quase um reality show do julgamento, intimida e oprime em suas cores, brilhos, contrastes, sombras e nuances. A narração interage a metalinguagem, definindo, impedindo e ou criando os próximos movimentos, como um jogo, comandado por um jogador em dúvida, mas poderoso. Ela aprofunda os seus personagens com seus silêncios, questionamentos, dúvidas e os recorrentes momentos de infantilidade do sentir. A busca da simplicidade e da felicidade limitada concretiza o abstrato, quando conota a solidão pelo barulho do vento apagando o fogo. As analogias dos sentimentos interligam a poesia da história apresentada e formam a digressão explicada de cada história paralela dentro da trama geral. “Tais pequenas recordações cheias de nostalgia, tão emotivas e tão inofensivas são reações de um cúmplice”, divaga-se sobre o catolicismo. “Quem disse que viemos ao mundo para sermos felizes?”, deixa no ar a retórica da pergunta.
A solução para o tratamento físico de Guido é um Spa perfeito, rico, simétrico nas imagens e com perfeição nas ações, com águas católicas e conversas existencialistas. “O cinema está atrasado 50 anos perante as outras artes”, diz-se. “Isso aqui é um hospício”, complementa-se. A sociedade hipócrita e alienada é desnudada pelo diretor, dilacerando rachaduras e vulnerabilidades, as deixando a mostra, sem defesas, nem vestimentas. A alma crua é transmitida, com consciência crítica. Porém o personagem não devasta o outro quando percebe as limitações alheias, apenas mascara com o silêncio para que o constrangimento não aconteça.
Em “Oito e Meio”, há o universo circense da diversão e da exposição dos próprios defeitos para acalentar o querer próprio de ser diferente. Fazendo isso, as peculiaridades de cada um são respeitadas por já serem ‘aceitas’. O charme natural do personagem encanta sem ser óbvio.
Ele não precisa fazer acontecer ou buscar algo, porque a sua própria característica e ou manias já dizem por si. “Você mente como respira”, diz-se.A câmera passeia e as luzes se acendem. “Que parque de diversão é esse?”, tudo dito é ambíguo e requer várias inferências. “Meu filme ajudaria a enterrar um pouco da morte que carregamos. Quero um filme honesto, sem mentiras”, diz-se. Há a metáfora do fim da carreira pela ótica fantasiosa da morte para a libertação das vontades da alma.
“Perdoe-me as várias citações, mas nós críticos fazemos o que podemos”, diz-se. “Oito e Meio” é sóbrio, sutil, poético, lúdico e surreal. Consegue aprofundar os personagens dentro do exagerado apresentado. O lirismo existencial apresenta-se realista, sem o clichê básico das repetições da normalidade. “Muda todo dia de caminho por medo de escolher o errado”, finaliza. A vida é um circo.
O título é uma referência ao número de filmes que o diretor já havia rodado, sendo que o “meio” refere-se a seu episódio de Amore in Città, filme composto por trabalhos de diferentes cineastas. 8 1/2 ganhou os Oscars de Filme Estrangeiro e Figurino em 1964. Em 2010, o diretor do filme “Chicago” realizou a refilmagem “Nine” deste clássico do Fellini.