O Último Tango em Paris
Deus do Céu
Por João Lanari Bo
Festival de New York 1972
A primeira exclamação do protagonista Paul (Marlon Brando) em “O Último Tango em Paris”, realizado em 1972, é Fucking God! – que ele grita tapando os ouvidos do barulho do metrô passando na ponte Bir Hakeim. Som e imagem abrem o filme com esse impulso transgressor, a câmera descendo na grua realçando o impacto. Paul, transtornado, andando a esmo, cruza com uma jovem apressada, de chapéu, Jeanne (Maria Schneider). Ela olha de lado para Paul, vira a cabeça, nesse instante seu olhar dirige a narrativa, olhamos Paul através de Jeanne. Cruzado o rio, chegamos na rua Jules Verne n. 1, onde consta, afixado na porta – apartamento para alugar.
Curioso é que a tradução de Fucking God nos subtítulos em português apareça, em geral, como “Deus do Céu” – em vez de, por exemplo, “Porra, Deus”. Num filme como esse, pautado por momentos transgressivos e desafiadores da moralidade cristã, é um ato falho considerável. Paul não hesita em ironizar aspectos ditos sagrados da família, entendida como meio pelo qual a sexualidade reprodutiva é organizada. No encontro casual que se segue entre os dois personagens no apartamento vazio, recusa-se a reconhecer nomes, recusa-se a fornecer qualquer antecedente, qualquer pista que identifique sua subjetividade. Para marcar esse momento, fazem um sexo impulsivo, bestial, de pé, na balaustrada da janela. Cena que inaugura as performances dessa dupla extraordinária de atores, Maria e Marlon.
Muito se falou sobre a atuação de Brando nesse filme, o controle absoluto do corpo nas mínimas expressões, a transição abrupta das intensidades que transmite – a crítica Pauline Kael considerou a novidade de “O Último Tango em Paris” comparável a “A Sagração da Primavera”, de Stravinsky, que inaugurou a música moderna numa noite de 1913. A descoberta do cinema finalmente chegou, escreveu em sua crítica no New Yorker quando assistiu a fita, Bertolucci e Brando alteraram a face de uma forma de arte. Sexo e morte: depois da emoção avassaladora na balaustrada, Paul volta ao hotel decadente que morava e confronta o corpo morto de sua esposa, deitado em um caixão. São palavras de ódio – ela se matou – que se transfiguram em discurso amoroso.
Mas pouco se falou sobre a excepcional atuação de Maria Schneider, além, claro, da violentação simulada que sofreu e denunciou, na cena da manteiga. Ela por certo não dispunha da formação conceitual e da experiência profissional de Brando, treinado no Actors Studio: tinha apenas 20 anos, ele 48. Não obstante, sua aguda sensibilidade, sobretudo para discernir a estratégia (e obsessões) do diretor, é um dos pilares de “O Último Tango em Paris”. Sua personagem parece não entender bem a situação em que se encontra, mas não titubeia em se lançar na aventura, ou ainda, na radicalidade do desejo. Jeanne e Paul cruzam fronteiras para afirmar a soberania dos sujeitos enquanto corpos desejantes, diria Georges Bataille.
Havia agora uma fenda na minha cabeça, tudo o que pensava me fugia. Queria dizer uma coisa e, no mesmo instante, não tinha nada a dizer…murmura um dos personagens de “O Azul do Céu”, romance erótico que Bataille escreveu em 1935, umas das inspirações de Bertolucci para escrever o roteiro. Nele, o tempo referencial e histórico – Guerra Civil espanhola – choca-se com o tempo febril do narrador e suas experiências sexuais alucinatórias. Não é o enredo que o aproxima do filme, mas a sexualidade que transcende a moralidade, em especial a fantasia de fazer sexo com uma pessoa desconhecida e sem nome.
“O Último Tango em Paris” motivou processos de obscenidade à época do lançamento, que visaram Bertolucci, Marlon Brando e Maria Schneider, assim como o produtor Alberto Grimaldi e o distribuidor, Ubaldo Matteucci. O Arquivo Estatal de Bolonha concluiu cinquenta anos depois a restauração de cerca de 2 mil páginas do processo (o material está disponível online). Quando o assunto foi finalmente julgado em instância final, terminou em absolvição. Nenhuma das três sequências mencionadas parece ofensiva ao senso comum de modéstia neste momento histórico particular de evolução cultural e da classe média italiana, disse o juiz.
Segundo a arquivista que fez a pesquisa, o filme evoca a Paris dos anos 1930, durante a redescoberta das obras do Marquês de Sade, por Georges Bataille e outros, onde os estados de ânimo culturais da Europa estavam concentrados.
E conclui: “O Último Tango em Paris” é a tradução visual de uma busca reveladora nas profundezas desconhecidas do homem, é uma busca antológica.