O Trio em Mi Bemol
Da elegância à precisão
Por Ciro Araujo
Durante o Olhar de Cinema 2022
Já faz mais de uma década que Éric Rohmer nos deixou. Mas, o “jovem” francês continua nos deixando diversas heranças. Dirigido por outra “jovem” figura, Rita Azevedo Gomes produz seu novo longa-metragem “O Trio em Mi Bemol”, baseado na única peça de teatro do falecido diretor. A proposta é simples como muitos filmes rohmericos parecem apresentar em sua superfície: um filme de diálogos, prezando pela conversa e pela relação entre um casal, independente do relacionamento real existente entre eles. O que vem a seguir é a conjuntura de um aproveitamento, já que o filme é por consequência de seu tempo um pandêmico, isto é, produzido sob isolamento, com poucos cenários, limitados números de atores. E, no entanto, é eficaz na elegância que só a cineasta parece ser capaz de.
“No fundo, estou a fazer um quadro com luz”, disse uma vez a diretora portuguesa de setenta anos. E de fato, é exatamente uma auto-descrição do que é seu cinema – quem melhor para falar sobre si mesma se não o eu? O enquadramento chama a atenção. Não, não é esteticamente esdrúxulo ou simplesmente belo pelo prazer como hoje definem a boa fotografia. Na verdade, o quadro é simples, cores levemente dessaturadas – ao ponto, não tanto –, com foco infinito para que a tela permita o que mais importa para Rita nesse filme: os atores.
Os planos sequências são o suficiente para que a autora faça essa interação entre filmagem contínua, atuação e crescimento de uma relação. Entre elas, uma hierarquia de sua forma, baseada na ideia de que há um diretor, personagem também no filme, que filma constantemente buscando expandir os sentimentos expostos pelos atores (protagonistas da obra). Falar sobre cinema através do cinema é constante de vários diretores. “O Desprezo”, “8 ½”, “A Ricota”. A vontade de se falar sobre as relações de trabalho dentro de um Set são grandes pelo universo cinematográfico. E portanto, a ideia se segue: algo entorno de dez minutos de conversas que não se sobrepõem, próximo ao teatro e um interlúdio, quando o cineasta-personagem descansa, em cenas cômicas, sob cadeiras de praias ou de jardim ou também assiste outros diálogos, dessa vez sob a condição voyeuristica tão atribuída ao cargo. Esse momento leva a suavidade necessária para acompanhar o tempo de exposição – se é que seja possível chamar assim – imposto pelo delongado tempo de conversação. Diante dessa natureza, seria inocência não acreditar que o filme pudesse cair no buraco do cansaço. Mas, eis que não cai.
Rita Durão e Pierre León compõe o elenco, em uma sintonia linguística magistral. Ambos atuam sob uma atuação, sem o natural ego que os intérpretes levam para si. Não é como se fosse algo natural, é claro, mas torna como comum essa combinação de características. Porém, não, Rita Azevedo é novamente precisa ao chamar seus amigos de longa data para um projeto que requeria isolamento total nessa época tão injusta que existiu. Agora sim parecia apenas da natureza comum entre todos essa sinestesia presente durante “O Trio em Mi Bemol”. Os diálogos funcionam livremente, apesar de claramente possuírem sequência. O fluxo de consciência aqui é verbal e para um segundo, ou seja, sem as principais características que o tornam a consciência. Todavia, marcam como exposição mental, o que o torna também próximo à técnica.
As digitais pandêmicas são óbvias, mas a obra evita ao máximo tratar sobre. É positivo porque Rita já previa ir além de simplesmente aproveitar o tempo livre enclausurada para falar sobre si mesma para entregar algo que olhasse mais para uma relação. A técnica e a genialidade da cineasta preservam o trabalho impecável e preciso que não se é comum. Durante parte do clímax fílmico, os atores protagonistas parecem misturar suas realidades, entre o profissionalismo e a tal da amizade. O amadurecimento enxergado no cinema da portuguesa é tranquilo e calmo, o que o torna por consequência marcante. De certo modo, a partir dessa mesclagem proposta pelo filme, a montagem acaba abrindo portas para uma montagem feita pelo público, para entender como está sendo feito o “filme dentro do filme”. A ficção interna ali é a cargo da imaginação de um espectador que é incentivado a quase participar, evitando a implosão que poderia acontecer na obra tão parada que é “O Trio em Mi Bemol”.
Mas que ninguém se engane: Rita Azevedo Gomes é com certeza o nome perfeito para adaptar o legado de conversas e comicidade deixado por Éric Rohmer. Quiçá até mesmo seus contos de moralidade, mas utilizando-se de uma outra peça de Mozart.