O Rio
Nas estepes do Cazaquistão
Por João Lanari Bo
Festival de Veneza 2018
“O Rio”, escrito, produzido e dirigido pelo cineasta cazaque Emir Baigazin, completa a trilogia do autor em torno de um personagem, Aslan, adolescente em processo de amadurecimento – desta feita com uma variante, como salienta Baigazin: “enquanto os dois primeiros filmes tratam de um assassinato real, no terceiro filme o protagonista luta com sua intenção de matar.” O enredo é cristalino: uma família vive isolada nas estepes do Cazaquistão, por decisão única e exclusiva do pai autoritário, no limite de uma autoexclusão esquizofrênica do mundo. Aslan – epicentro dramático da história, vivido na tela com uma intensidade surpreendente por Zhalgas Klanov – é o mais velho de cinco irmãos, e por isso designado pelo pai como substituto na gestão das (parcas) atividades produtivas do pequeno sítio em que vivem. Substituto significa exercer também as prerrogativas da autoridade, como punições e julgamentos, principal característica da severidade paterna – sua mãe é uma presença periférica, eventualmente suave, esgueirando-se pelos austeros aposentos da casa, servindo comida e evitando conflitos.
Planos demorados e lentos, marca de “O Rio” – a realidade rural é lenta, dizia Leon Hirzman a propósito de “São Bernardo” – e uma aridez em todos os quadrantes fornecem o cenário. No início, os cinco irmãos ocupam o espaço com uma pulsão lúdica: são dois gêmeos logo abaixo de Aslam, um terceiro próximo e um quarto temporão, movimentando seus corpos com jogos de toda a sorte, reconhecíveis para qualquer espectador. Pés descalços, ruídos e sussurros dos passos no assoalho varrido e na terra batida, conferem um ambiente sensório atenuante e absorvente – suspensos, claro, com as aparições cortantes do pai. A direção de atores lembra o minimalismo objetivo de Robert Bresson, transplantados para um Cazaquistão, digamos, bíblico. Roupas absolutamente homogêneas e simples, com cor de terra, sugerem essa ligação atávica com o meio natural circundante. O primeiro objeto que denota uma temporalidade histórica é a moto com sidecar do pai, antiga e empoeirada – ele vai à cidade vender a produção, deixando Aslan no comando. Em um breve diálogo, em mais uma saída, confidencia à esposa que construiu a casa isolada para manter sua família segura, quer dizer protegida da modernidade.
Na circunstância cazaque do conto popular de Baigazin, o isolamento pode remeter, por uma via transversa e metafórica, à rigidez do ordenamento soviético – o Cazaquistão era uma das estrelas asiáticas da União Soviética, constituído formalmente em 1936 como República Socialista Soviética Cazaque. A presença soviética, apesar da migração de contingentes de população caucasiana, manteve esse isolamento: o país foi a última das repúblicas soviéticas a declarar sua independência após a dissolução da URSS, em 1991; o presidente Nursultan Nazarbayev, que foi líder nacional desde os tempos do comunismo, ficou no poder até março de 2019!
“O Rio” funciona, portanto, dentro de um contexto (quase) medieval. Para romper com esse círculo asfixiante, Baigazin lançou mão de duas estratégias: a primeira é a introdução do rio no espaço visual, matéria líquida em movimento; não se pode entrar duas vezes no mesmo rio, já dizia Heráclito, ou seja, “tudo muda e nada permanece sendo o que é”. Os garotos, liderados por Aslan, se livram da rotina acachapante de fabricar tijolos de barro e mergulham no fluxo do rio, liberando corpos e mentes – o pai nunca os levara ao rio. A segunda transgressão é corpórea: irrompe naquela realidade monótona um primo também adolescente, Kanat, vestido com jaqueta prateada, chapéu verde e meias amarelas fluorescentes até o joelho – figurino chamativo prima facie. Kanat pergunta: “vocês não tem televisão?”, e a resposta de Aslan, olhando a cenografia espartana de sua casa: “está estragada”. Kanat introduz o signo disruptor da modernidade, um tablet! Através do artefato entram na casa notícias uptodate do capitalismo mundial, as crises que afetam a globalização, a capacidade da China de continuar sendo a “fábrica do mundo” – e todos, até o pai, se deixam hipnotizar pelas ondas eletromagnéticas do mundo exterior.
O formalismo ascético que havia orientado a estética de Emir Baigazin na maior parte da narrativa cede, enfim, a uma espécie de darwinismo intramuros. Nas interações entre os meninos, os choques se intensificam, de modos cada vez mais traiçoeiros. Sobrevive o mais capaz,como na lei da selva, ou o mais esperto, como na lei dos homens? É nesse ciclo que Aslan completa sua maturação, para o bem e para o mal. O isolamento é uma prisão, e o paraíso socialista uma ilusão – bem-vindos ao século 21.