O Retorno
A vertigem
Por João Lanari Bo
Festival de Veneza 2003
“O Retorno” foi o primeiro longa-metragem do diretor Andrey Zvyagintsev, realizado em 2003, mais ou menos 12 anos depois da queda do império comunista. Nascido na Sibéria, em 1964, na aurora da era Brejnev da União Soviética, seu ídolo na adolescência foi Al Pacino. Tornar-se ator foi o desdobramento inevitável, o sonho juvenil. Deu um jeito de mudar para Moscou, e encarou o real – passou anos limpando casas, varrendo folhas de outono e removendo neve. Os invernos na Rússia são muito severos, disse em entrevista, mas tudo bem, a neve não estava ruim. O problema era o gelo, tinha que bater nele por horas, só para quebrá-lo… o gelo quase me matou. Zvyagintsev logo se deu conta de que haviam melhores atores do que ele, e acabou conseguindo dirigir episódios para uma série televisiva. O clima opressivo e angustiante de suas origens geladas reapareceria no seu mais bem sucedido filme, “Leviatã”, de 2014 – e também o mais polêmico, marco da sua exclusão do rol dos realizadores financiáveis por recursos do Estado russo. Suas primeiras produções não tocaram muito na realidade moderna, foi mais fácil para o governo apoiá-las. Com “Elena”, de 2011, o cenário pulou para a Moscou moderna, com conflitos de classe característicos do capitalismo algo selvagem que tomou conta da sociedade russa contemporânea – nada que não seja reconhecível para a audiência ocidental, mas sempre um pouco chocantes quando confrontados com a utopia socialista que predominava na URSS. A retórica fascista dentro da igreja ortodoxa e o retrato de Putin no gabinete do prefeito corrupto em “Leviatã” foram demais para o Ministério da Cultura: depois de carimbar o filme como candidato oficial ao Oscar, as autoridades decidiram abruptamente que o detestavam. Na ocasião, foi elaborado um novo conjunto de diretrizes, visando expressamente os filmes que “contaminam” a Rússia. Seu último trabalho, “Sem amor”, de 2017, foi feito sem apoio estatal, basicamente com fundos europeus. Estou fora do sistema, afirmou.
Zvyagintsev é um dos mais interessantes intérpretes da emergência desse vasto e complexo país na ordem global contemporânea – dominado por um personagem autocrata, Putin, e caracterizado por um sistema que os observadores chamam de “democracia administrada”, sujeita a manipulações eleitorais e eventuais eliminações de adversários. São poucos os filmes desse autor, todos carregados de uma historicidade peculiar e dramaticamente intensos. “O Retorno” – que ganhou o Leão de Ouro em Veneza – conta a história da súbita reaparição do pai de Andrei e Ivan, depois de 12 anos de ausência inexplicada. A primeira sequência mostra os garotos numa prova de coragem: mergulhar num lago do alto de uma torre, desafio que Ivan, o mais jovem, refuta. O próprio diretor sugeriu uma leitura alegórica: uma intrusão metafórica de Deus na vida humana, um pai que vem inesperadamente confrontar o mundo organizado dos filhos, ligados à mãe e à avó. A primeira identificação do pai é a palavra da mãe, personagem que irradia uma beleza renascentista – e a confirmação vem com a checagem da foto antiga, guardada numa Bíblia ilustrada no sótão da casa, com páginas abertas retratando a criação e o sacrifício de Isaac por Abraão. Quem é esse pai que não hesita em matar o filho por uma ordem divina? E quem é esse Deus capaz de exigir uma prova de lealdade como essa? As composições visuais, as variações de luz, os horizontes indefinidos – pai e filhos partem numa viagem de pescarias e conhecimento, até chegar numa ilha – colaboram para a atmosfera alegórica, ou seja, pensamentos ou emoções expressando simbolicamente um objeto para significar outro. Dúvidas em relação à periculosidade do pai, seus telefonemas misteriosos – nunca explicitados – transcendem o plano imediato do temor filial e transfiguram-se em profundidades pictóricas. Uma torre, a vertigem – novamente a verticalidade parece definir os acontecimentos.
A década de 1990 foi turbulenta, política e economicamente, na ex-república socialista. No início dos anos 2000, com a ascensão de Putin, o país encontrou relativa estabilização por meio de um capitalismo de Estado concentrador de renda e pouco transparente. “O Retorno” refere-se aos 12 anos de ausência do pai – exatamente o período em que a Rússia experimentou as turbulências e a gestão tumultuada de Yeltsin. No filme, uma combinação de metafísica com relações familiares, o pai parece invisível, sobretudo para o filho Ivan – assim como Deus poderia ser para um cético. A revelação do amor paterno, ou divino, só pode se dar num ato repentino de beleza.