O Relatório
Tarja preta e tortura
Por Vitor Velloso
Durante a Mostra de São Paulo 2019
Tido como uma das maiores apostas da Amazon para a temporada de premiações, “O Relatório”, dirigido por Scott Z. Burns, é um retrato claro de um produto norte-americano que vai buscar seu destaque através do confrontamento de políticas públicas estadunidenses. Porém, sem buscar detalhar as discussões que são atravessadas na temática do longa, o projeto cai em uma retroalimentação de fragilidades dramáticas e sofre em expôr um cenário político volátil.
Diferentemente de “The Post – A Guerra Secreta” e suas intenções turvas, o longa de Burns aparenta ser brevemente mais honesto em suas proposições, expondo o sistema como uma máquina que envereda a moralidade a seu bel prazer e sufoca os indivíduos de acordo com seu interesse, sem nunca permitir uma avaliação de suas ações. Assim, a narrativa que acompanha Daniel Jones (Adam Driver), é construída a partir de uma reafirmação de gênero cinematográfico, um thriller político que mantém seus esforços em amaciar o ego de uma indústria que aprecia tal tipo de projeto. O resultado é um longa que não se arrisca em sua progressão da problemática do governo norte-americano, nem na forma que se estrutura. Contudo, o diretor demonstra uma preocupação em devolver parte do tom cínico utilizado pelas autoridades no momento de se justificar de qualquer vazamento, em sua encenação que abre espaço para a comicidade. Parte da acidez vista durante a projeção vem da noção absurda de como o monitoramento interno das instituições públicas é comprometido pela censura entre os próprios setores.
Porém, comprometendo gravemente a dilatação das discussões políticas do filme, o mesmo sente a necessidade, constante, de propor a visualização da violência comentada nos textos, soando fetichista por essa imagem de obviedades. A descrição dos atos em si, tornaria o processo mais visceral, o oposto acontece no recurso expositivo, que além de não acrescentar a investigação-eixo do longa, interrompe o fluxo narrativo drasticamente, criando uma quebra no ritmo.
Dramaticamente, “O Relatório” impõe o clássico modelo de transformação de padrão de comportamento diante do próprio ofício. O protagonista é parte de um sistema do qual não possui consciência crítica das atitudes da instituição ou mesmo de sua funcionalidade diante da complexidade do jogo maniqueísta das autoridades, mas com o decorrer do tempo se sente alimentando uma tóxica relação com a mídia de mentiras e omissões. Aqui, a tortura e a censura são os guias para essa mudança no personagem, mas guiadas através de relações pessoais interpeladas pela agência.
Desta maneira, a compreensão individual, tipicamente estadunidense, é dada com determinados arquétipos de uma estrutura pré-concebida pela indústria, sem fugir do esquemático, logo, é fácil encontrar as potencialidades que podem diferenciar o projeto de Burns dos demais. Não necessariamente pela sua proposta formal, que se assemelha aos demais, mas na maneira de conciliar a mise-en-scène regida pelo rigor das formalidades da narrativa e a insinuação de um debate que atravessa a contemporaneidade.
É fácil reconhecer méritos de “O Relatório”, seja na montagem que busca uma marcação pontual dos dramas projetados, na fotografia que não apela para os contrastes busca uma dramatização excessiva (já presente na trilha) ou no roteiro habilidoso em contornar temáticas e assuntos tortuosos com um didatismo louvável. Apesar disso, não há grande destaque para nenhuma das questões, são acima da média com relação à indústria, mas longe de ser uma autoria exemplar na direção de Burns ou mesmo de um produto que marque território no âmbito da sucessão de filmes políticos, acerca dos escândalos recentes norte-americanos.
Com uma possível campanha forte para o Oscar de 2020, o filme deve ganhar notório destaque ao longo dos meses e quem sabe uma indicação a Adam Driver (que também corre por “História de um Casamento”, do Noah Baumbach). Por mais que haja determinado murmurinho sobre a obra, é preciso que o espectador embarque na jornada de Daniels, sem reconhecer ali as próprias noções morais e políticas por trás da narrativa, ainda que a denúncia seja a verve, a forma é parte de um sistema tão tóxico quanto o alvo do agente.