O Processo – Praga 1952
A Confissão
Por João Lanari Bo
Durante o É Tudo Verdade 2022
“O Processo – Praga 1952” é um documentário de 2021 sobre uma das maiores farsas que se tem notícia na esfera stalinista de poder – e a competição não é fácil. Na década de 1950, Stálin resolveu aplicar série de expurgos com vistas a reassegurar, por parte da União Soviética, o controle dos países do leste europeu. Desmontar lideranças e quadros de destaque, a exemplo do que havia feito em seu país, em particular no biênio 1937-38, era o caminho mais eficiente para atingir esse objetivo: o próximo passo era substituí-los por funcionários servis e amedrontados.
A antiga Checoslováquia foi a bola da vez: 14 foram presos e indiciados, entre eles figuras poderosas do Partido Comunista Tcheco, como o próprio Secretário-Geral, Rudolf Slansky. O “julgamento” começou em 20 de novembro de 1952 – várias acusações, incluindo alta traição e conspiração contra a República da Tchecoslováquia, foram dirigidas ao grupo. Todos 14 réus foram considerados culpados, numa patética pantomima jurídica: onze foram condenados à morte e executados, em dezembro de 1952, e os três restantes receberam sentença de prisão perpétua. Dos 14, onze eram de origem judaica, inclusive Slansky.
O documentário em tela foi realizado a partir da descoberta em 2018 – no porão de um armazém, nas cercanias de Praga – de latas de filmes contendo registro audiovisual das “confissões”, que seria utilizado para peça de propaganda, afinal nunca completada, provavelmente por conta da morte de Stálin, em março de 1953. As imagens e o som do material recém-descoberto configuram uma espécie de reality show stalinista: dirigentes e burocratas espremidos entre soldados ouvem as acusações mais díspares possíveis; depois de meses de tortura, terminam admitindo uma culpa abissal, como se a confissão fosse algo do profundo íntimo.
Não havia nenhuma prova, nada que insinuasse conspiração para vender o país aos imperialistas ocidentais ou seguir vias independentes, como Tito fizera na Iugoslávia. Era, enfim, um exercício paranoico-preventivo, emanado de uma potência também imperialista, a URSS, às voltas com a Guerra Fria e a manutenção de zonas de influência – qualquer semelhança com o que ocorre atualmente na Ucrânia não é mera coincidência.
O show trial em Praga foi precedido por evento análogo, em 1949, em Budapeste. O comunista húngaro Laszlo Rajk, Ministro do Interior, foi acusado de ser um “espião titoista”, agente do imperialismo ocidental que planejava restaurar o capitalismo e pôr em risco a independência da Hungria. Tudo fazia parte de uma “conspiração sionista mundial” – embora Rajk não fosse judeu, seis dos outros réus eram. Trotskismo era outra faceta da acusação. Na Checoslováquia, julgamentos espúrios foram realizados a partir de 1948, quando os comunistas tomaram o poder – e Slansky foi um dos articuladores. Em “O Processo – Praga 1952”, o feitiço virou contra o feiticeiro.
A história é dolorosamente rememorada através dos descendentes de três dos condenados: a filha e o neto de Slansky, que não escondem o passado submisso do pai; o filho e a neta de Rudolf Margolius, também executado após a farsa; e os três filhos de Artur London, condenado à prisão perpétua. London foi anistiado na distensão que se seguiu à morte de Stálin e às revelações de Nikita Khrushchov no 20º Congresso do Partido Comunista Soviético, em 1956 – foi ele quem escreveu o livro adaptado para o cinema por Costa-Gavras em 1970, “A Confissão”, com Yves Montand e Simone Signoret .
Confissão, não custa lembrar, que era obtida mediante tortura e memorizada a força antes da performance no tribunal: falas curtas e grossas, que terminavam com pedido do acusado para ser punido com a pena de morte. A única peça acusatória era a confissão: uma representação teatral, enfim, em que o ator não pode errar uma vírgula da sua fala, mesmo sabendo que está condenado a priori. A situação lembra um daqueles paradoxos lógicos característicos da narrativa kafkiana, desta feita carregado de um realismo que nem o escritor de Praga seria capaz de imaginar.
O material que ressurgiu no armazém – seis horas de filme preto e branco 35 mm, e 80 horas de áudio – está agora no Arquivo Nacional de Cinema da República Tcheca, aguardando recursos para restauro adequado. A expectativa é que novos filmes sejam produzidos, na esteira de “O Processo – Praga 1952”. Um dos problemas que contribuiu para o apagamento do processo de 1952 é que praticamente não restaram registros judiciais: o arquivo do tribunal desapareceu em algum momento turbulento da vida política tcheca. A exceção, até aqui, era a memória dos participantes, como o livro de London: agora vieram à tona sons e imagens dos acontecimentos.