O Problema dos 3 Corpos
Revolução Cultural
Por João Lanari Bo
“O Problema dos 3 Corpos”, recém-lançada no streaming, é a série em oito episódios que vem com tudo na Netflix, depois de longa maturação e muito dinheiro: quem alavancou a produção foi a dupla David Benioff e DB Weiss, criadores de “Game of Thrones”, sucesso dos sucessos do consumo audiovisual. Dessa vez a dupla arriscou um voo alto, de milhares de anos-luz: a adaptação do bólido homônimo da literatura recente de ficção científica, escrita pelo chinês Liu Cixin, popular entre público e crítica, considerado “inadaptável” pela complexidade temática e características específicas chinesas.
Liu Cixin nasceu em 23 de junho de 1963 na província de Shanxi – seus pais trabalhavam em uma mina de carvão, e ele acabou sendo enviado para reeducação em outra província, durante a Revolução Cultural maoísta (“O Problema dos Três Corpos”, o livro, tem como pano de fundo o ambiente paranoico daqueles anos turbulentos). A série começa com a estudante e futura astrofísica Ye Wenjie assistindo, junto com a massa enlouquecida, a humilhação pública de seu pai, físico e professor, seguida de espancamento até a morte. Ninguém sabe ao certo quantos “intelectuais reacionários”, categoria que incluía acadêmicos, artistas e funcionários, morreram ou ficaram incapacitados durante o período – seriam dezenas de milhões.
O assunto é obviamente sensível na China. Fazer disso o núcleo deflagrador da série é mais uma ousada tacada dos produtores. Ye Wenjie é enviada, pela excelência do seu background teórico, para um projeto militar secreto que busca estabelecer contato com alienígenas em galáxias distantes. Nessa fantasia de escapismo interestelar – a realidade imediata do socialismo era dura e crua – a cientista encontra interlocutores de civilização em outro planeta à beira da destruição, dispostos a conquistar a Terra para sobreviver. Por alguma razão que a própria razão desconhece, ela se convence que esta seria a melhor opção para a humanidade superar os infindáveis males que a afligem, desde o início dos tempos. Uma opção plena de referências religiosas, ou melhor, de fanatismos religiosos.
Os anos se passam e Ye Wenjie vai para a Inglaterra, tornando-se mãe de uma brilhante cientista que se suicida misteriosamente. O grupo de amigos próximo – os “cinco de Oxford” – todos igualmente brilhantes, duas mulheres e três homens, passam a ocupar o centro dramático das ações e reações. Entram em cena também agentes dos órgãos da inteligência britânica, entre eles um sino-inglês perspicaz e safo, e um irlandês durão e rápido no comando. Se o perfil dos “cinco”, todos egressos da pujante academia científica, constitui-se uma novidade na paisagem do streaming, os representantes das forças de segurança, embora bons atores, primam pela obviedade arquetípica.
Tudo isso, entretanto, não comoveu a audiência chinesa, quando do lançamento da série em 21 de março passado: pipocaram críticas na Weibo, rede social chinesa, sobre a “ocidentalização” dos personagens e situações de “O Problema dos 3 Corpos”, sobretudo pela localização da trama no decadente império anglo-saxão (no livro, é na China). Note-se que a Netflix, como Google e Facebook, estão em princípio interditados na China – mas não faltam caminhos para burlar a “muralha”. O que os internautas chineses chamam de “ocidentalização” talvez esteja embutido nos famigerados arcos dramáticos dos personagens, momentos de drama humano que captam e sustentam as ansiedades cognitivas dos espectadores – em outras palavras, um roteiro consistente, para os padrões hollywoodianos, aspecto que a dupla Benioff e Weiss usa e abusa.
Noves fora os insinuantes e maquiavélicos estratagemas para segurar a audiência, “O Problema dos 3 Corpos” traz à baila um problema de mecânica orbital ou astrodinâmica, já enunciado no próprio título – como é difícil prever o movimento de três corpos que pertencem ao mesmo sistema orbital. Tudo começou quando o genial Isaac Newton tirou da cartola a Lei da Gravitação Universal, em 1687, que permitiu calcular como dois objetos, um planeta e uma estrela, por exemplo, vão se mover. Ao incluir um terceiro objeto, instaura-se o caos, dizem os especialistas, pois é impossível prever qual será o movimento orbital desses três corpos celestes. Se um segundo Sol chegar no sistema solar que habitamos, ambas as estrelas poderão gerar energia suficiente para expulsar a combalida Terra – e aí, salve-se quem puder.
Tudo indica que alguns bilhões de anos nos separam dessa possibilidade macabra. Para os habitantes de San-Ti, o planeta que atendeu ao chamado de Ye Wenjie no ocaso da Revolução Cultural chinesa, o caos aparentemente chegou.