O plano de Maggie
Psicopatologia da vida cotidiana
Por João Lanari Bo
Festival de Toronto 2015
Nesses tempos de extremismos polarizados, sabemos que um dos polos dessa maré avassaladora é o próprio Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Diariamente, somos assaltados por uma retórica belicosa e ultrajante, proferida num tom de (falsa) intimidade e contundência infantil – embora produza efeitos concretos na vida de seres humanos em todo o mundo, particularmente em seu país. Trump é um produto, se é que é possível resumir, desse lifestyle psicótico que parece espraiar-se nas redes e outras interfaces midiáticas. Psicótico: estado de perda de contacto com a realidade, manifestando-se como sintomas como delírios (crenças falsas), alucinações (perceber coisas que não existem), pensamento e fala desorganizados e comportamento motor anormal.
“O Plano de Maggie”, longa lançado em 2015 dirigido por Rebecca Miller, navega na contracorrente dessa maré, que pode ser, como dizia Oswaldo de Andrade, a última maré do capitalismo. Rebecca é uma atriz/diretora formada no ambiente cultural novaiorquino, filha do dramaturgo Arthur Miller e casada com o ator Daniel Day-Lewis. A mesma cidade que gerou Trump gerou também, e continua a gerar, uma intensa produção intelectual, acadêmica e artística: o filme em tela inscreve-se nesse universo como uma comédia sobre impasses afetivo-sexuais contemporâneos. Algo que lembra os melhores momentos dos trabalhos de Woody Allen nos anos de 1970 e 80, pelo menos até vazarem as suspeitas de child molester contra ele – que até então desfrutava de prestígio artístico sem par entre os espectadores tidos como mais exigentes.
Enquanto os filmes de Allen centravam-se no narcisismo autoindulgente do personagem, “O Plano de Maggie” atualiza e dilui essa estratégia em um (inusitado) triângulo amoroso, ambientado, é claro, em um circuito universitário. Maggie (Greta Gerwig) é solteira e quer um filho, mas, admitindo que fracassa em relacionamentos duradouros, decidiu abrir mão da espera pelo parceiro ideal e optar por uma doação de esperma. O primeiro candidato é Guy (Travis Fimmel), antigo conhecido da universidade que desistiu da matemática e virou produtor de picles. No momento da doação, Guy pergunta se é possível fazer um filho através do old way. Maggie recusa, com uma expressão inocente e dumb, que se revelam como características de sua personagem (dumb pode ser “burra”, “estúpida”, “muda” ou “pateta”, de acordo com o Google translator). Mas essa pode ser apenas uma impressão inicial.
Maggie aconselha e orienta estudantes de design, tem especializações na área, como diz com convicção meio apatetada. Quando está em um de seus intervalos afetivos, conhece o professor adjunto e antropólogo John (Ethan Hawke), escritor frustrado (e angustiado), adepto da corrente teórico-metodológica fictocriticismo – uma espécie de jornalismo antropológico que mistura fato e ficção, observação etnográfica, história arquivística, teoria literária e memórias. Ironicamente, o verniz cultural de John seduz Maggie e os dois se aproximam – enquanto ele lamenta seu casamento sem amor e decepcionante, ela lhe dá palestras motivacionais e apoio ilimitados. Por uma dessas improváveis coincidências fortuitas, como nas histórias de Woody Allen, John a visita em estado de desespero existencial no dia em que Maggie tenta a auto-inseminação – e declara seu amor eterno a ela, além de, naturalmente, pedir para dormir em sua cama. Maggie, meio sem jeito, reponde com um singelo “eu te amo”.
Entra em cena Georgette (Julianne Moore), a esposa de John, uma excêntrica e carreirista acadêmica dinamarquesa. Georgette aparece em princípio como paródia de uma intelectual europeia séria, mas pouco a pouco evolui para uma (convincente) personagem carente e vulnerável – méritos da atriz. As duas estrelas, Moore e Gerwig, têm, notoriamente, personas muito diferentes na tela — Moore exibe técnicas refinadas, Gerwig é sobretudo intuitiva, falsamente superficial — mas juntas elas criam uma conexão que é inesperadamente simpática e acolhedora. Os diálogos entre elas são um dos melhores achados de “O Plano de Maggie”: há algo tão puro em você… e um pouco estúpido, murmura Georgette.
Greta Gerwig, autora do “plano” e centro de gravidade do filme, consolidou-se como atriz em produções de baixo custo e firmou-se como realizadora em produções ambiciosas, como “Adoráveis Mulheres” e “Barbie”, de 2020 e 2023. Como atriz, sua inteligência se manifesta em observações perspicazes e desejos peculiares, com um toque de autodepreciação que esconde seu talento genuíno. Como realizadora, tornou-se referência incontornável no show business.
Um dos adeptos do fictocriticismo define sua produção literária como:
uma escrita que se dedica à flexão de gêneros, um engajamento literário e teórico com a existência e a individualidade: o que pode resultar dessa união não está claro, mas oferece esperança, entusiasmo e promessa.


