O Perdão
O travelling é uma questão de moral
Por Pedro Mesquita
Parte significativa dos filmes que se lançam por aí encontram sua razão de ser na defesa de pautas sociais que os realizadores julgam relevantes. Este não é um fenômeno exclusivo aos dias de hoje, e tampouco pode ser considerado a priori como um sinal de pobreza artística (ou não seriam os filmes de Sergei Eisenstein, Dziga Vertov, Aleksandr Dovzhenko, Vsevolod Pudovkin, alguns dos maiores já feitos, apesar do seu caráter propagandístico?). O exemplo dos realizadores soviéticos parece apropriado: a falta de liberdade no plano da mensagem parece ter-lhes proporcionado uma liberdade de outra natureza, a formal, a partir da qual algumas das obras mais ricas e mais complexas da história do cinema foram concebidas.
O êxito de filmes com algum teor propagandístico (ou de filmes que, no geral, buscam defender uma tese de qualquer tipo) parece depender, portanto, da aptidão dos realizadores de escapar da tentação de reduzir a realidade, em toda a sua complexidade, a um mero slogan; de subestimar a inteligência do espectador, simplificando a ação dramática em um tal grau que ele parece mais assistir a uma peça publicitária que a um filme; de recorrer a um uso tautológico da linguagem cinematográfica.
Começamos dizendo tudo isso pelo fato de “O Perdão” ser um desses filmes que encontra sua razão de ser na defesa de uma pauta social. O filme iraniano, dirigido por Behtash Sanaeeha e Maryam Moghaddam, posiciona-se veementemente desde o seu início contra o fato que ele visa a criticar: a pena de morte, procedimento legal no país.
O início do filme escancara tudo isso. Abrimos com uma citação, pertencente ao Alcorão: “E lembrem-se quando Moisés disse ao seu povo: Allah ordena que você mate uma vaca. Eles responderam: Você zomba de nós?”. A cena seguinte trata de contradizer esses dizeres, na medida em que ressalta a distância entre o texto e a realidade: somos ambientados numa prisão, onde a sentença de morte é decretada a um homem. Sua mulher, Mina, visita-o para se despedir dele. Ela entra em sua cela e a porta se fecha sem que a câmera possa adentrar aquele espaço junto dela. Numa simples decisão de mise en scène — essa de não revelar a despedida dos dois —, “O Perdão” envolve o espectador no drama sem ceder àquela que seria a maneira mais cômoda de representar a cena: adentrar a cela, usando e abusando dos planos próximos e dos close-ups para extrair daquele momento toda a dor do casal. O travelling para trás — lembremos do famoso dito “o travelling é uma questão de moral” —, por outro lado, ao invés de individualizar a dor, torna-a impessoal, coletiva; torna-a banal, num sentido que aqui é positivo: eis uma dor que tantos sofrem neste país.
Boa parte do sucesso de “O Perdão” se deve a essa abordagem realista e austera de Sanaeeha e Moghaddam: o filme é decupado de maneira bastante econômica, com poucos planos e pouco movimento ocorrendo no interior destes, de modo que, quando ele acontece, sua intensidade é sentida de maneira especial. Outro momento particularmente bem sucedido, para exemplificar isso, é aquele, mais ao final, em que Mina descobre a identidade do homem de quem havia se tornado amiga. A cena, rodada num longo plano-sequência em que a tensão dramática vai se acumulando gradativamente, culmina num plano aberto em que três personagens podem ser vistos simultaneamente. Ao invés de escancarar, por meio de close-ups, a ira de Mina, vemo-la no canto deste plano geral, custando a controlar a sua raiva, sabendo que extravasá-la lhe custaria a paz recém conquistada.
O filme, por outro lado, não leva o seu realismo — e a sua sutileza — às últimas consequências. Visto que o seu ponto de partida é a crítica social, temos por vezes a impressão de que as personagens, antes de possuírem uma existência autônoma, cumprem o papel de meros veículos de uma mensagem. À personagem de Mina, cabe ser o receptáculo de todas as dores que uma sociedade patriarcal pode lhe proporcionar — de cujo papel ela só se liberta às vezes, sobretudo em cenas com a filha —; à personagem do ex-juiz arrependido, cabe a reflexão sobre a quantidade excessiva de poder que recai aos homens incumbidos de condenar os outros à morte…
Apesar disso, a impressão deixada pelo filme ainda é positiva: “O Perdão” sabe criticar sem ser panfletário e sabe dramatizar eventos delicados sem recorrer à manipulação fácil.