O Pastor e o Guerrilheiro
Os caminhos da fé
Por Vitor Velloso
“O Pastor e o Guerrilheiro”, de José Eduardo Belmonte, é um projeto sintomático do atual momento do cinema brasileiro. Procurando transitar entre a exposição didática do que foi a ditadura militar, sua violência e feridas deixadas na sociedade brasileira, e determinadas contradições entre a luta política, a fé e outros aspectos ortodoxos de textos que antecedem os personagens, sejam os escritos de Marx ou a Bíblia. Contudo, essa ambição não se cumpre em um projeto que se vê tão perdido por onde caminhar, quanto sua pretensão de ser edificado como uma espécie de bastião entre seus pontos duais. É mais ou menos o caminho percorrido em “Alemão”, também de Belmonte, que demora tanto a decidir um posicionamento que a terceira via se vê no topo por um excesso de conciliação.
Está claro qual o posicionamento de Belmonte sobre a ditadura, o problema é que seus esforços em complexificar a narrativa e os dramas particulares ali envolvidos, esvazia a experiência em uma série de recursos expositivos e cria uma dicotomia pouco reflexiva sobre sua própria temática. Não cabe discutir o que o projeto poderia ter sido, mas vale mencionar que as investidas em uma representação que tenciona, constantemente, utopia e simbolismos religiosos é quase infantil de tão superficial.
Todas as situações que o espectador acompanha em “O Pastor e o Guerrilheiro” possuem uma ligação contextual clara, mas sempre muito difusa, fragmentada e com trechos de sobreposição frágeis. Um exemplo disso é a personagem Juliana (Julia Dalavia) que procura nos locais físicos uma espécie de reconstrução imagética de escritos históricos. Contudo, onde essa conexão existe, ela parece se perder em meio às inúmeras temáticas que vão se avolumando em uma narrativa que não dá conta de desenvolver seus personagens, perdendo força com sua progressão e flertando com cenas desconfortáveis pelo seu caráter idílico.
Quando escutamos sobre utopia, amor, necessidade de resistência, revolução etc, na figura dos jovens estudantes, a obra provoca dois sentimentos contraditórios no espectador, por um lado nos aproxima do caráter subjetivo do contexto histórico, por outro, realiza esse retrato de forma quase irônica, com atuações pouco convincentes e situações onde o exotismo exercido pelo cinema parece dominar a forma que Belmonte constrói. Isso faz com que o filme, repleto de boas intenções, permaneça em um lugar comum onde a denúncia é realizada, uma certa problematização geracional é realizada, mas tudo é estagnado em um campo moral, onde a própria materialidade está sobrecarregada de valores simbólicos. E antes que o leitor decida por um ataque argumentativo em defesa da interpretação “que as chagas ideológicas da ditadura também podem ser interpretadas em suas formas materiais e sociais”, não há dúvida quanto a isso. Mas é justamente onde “O Pastor e o Guerrilheiro” falha, pois não consegue dar conta da complexidade de seus temas e decide arrasar-se apenas ao mais simples, de fácil representação no contexto contemporâneo e com críticas de caracteres limitados.
Toda a trajetória de Miguel (Johnny Massaro), possivelmente o trecho mais interessante da obra, acaba se resumindo à uma representação de martírio, tortura e diálogos que conflituam os diferentes tipos de fé que se pode ter por um mundo melhor. Apesar das contradições que o próprio filme recai, ao trabalhar o tema da fé de forma particularmente problemática no caso do guerrilheiro, são tentativas de retirar determinadas bipolaridades construídas ao longo da história social brasileira. Assim, o projeto mantém um pacto de mediocridade com os próprios debates que decide trabalhar e ainda se articula como um panfleto, onde suas analogias possuem limites muito claros, tal como alertou Marx sobre o uso de analogias para uma análise concreta da realidade e sua particularidade.
Desta forma, “O Pastor e o Guerrilheiro” deixa de ser uma obra didática e se torna uma exposição situacional, pouco convincente pelas atuações e dispositivos utilizados, desde a fotografia que faz questão de saltar à vista do espectador para as violências e tensões, até o uso de imagens explícitas que, apesar de seu impacto e veracidade, acaba praticando uma manutenção de diversas outras obras que já trabalharam com o contexto da ditadura na cinematografia brasileira. E este é o maior entrave do filme, tentar encontrar formas de conseguir flexionar dois lados de uma história, sem que isso seja memorável ou novo, o que é uma pena.