O Paraíso Deve Ser Aqui
A construção possível do céu
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Cannes 2019
Todo e qualquer ser humano existente e ou ainda não criado deseja a equilibrada calma do céu. As religiões oferecem sem limites este “mimo” como um produto viável e capitalista, fazendo com que guerras sejam travadas. E o diretor palestino Elia Suleiman, na máxima de sua naturalista perspicácia, aborda o tema em seu mais recente filme “O Paraíso Deve Ser Aqui”. Exibido na mostra competitiva do Festival de Cannes 2019, e que saiu com o prêmio Fipresci da Crítica Internacional e com o Prêmio Especial do Júri – Menção Honrosa, de forma espirituosa e fabular, à moda do francês Jacques Tati, silenciosa e observadora da realidade, com um que de Woody Allen, conjugando surrealismo e uma editada verdade documental, completamente subjetiva aos olhos.
“O Paraíso Deve Ser Aqui” é uma experiência de confronto visual. Analítica e formadora de opinião ao encarar o objeto focado, muita parecida com a estrutura fílmica do finlandês Aki Kaurismäki. Aqui, Elia realiza sua simbólica road-movie, passando por países a fim de traçar uma antropologia para assim comparar com a de seu próprio. É um aventureiro e um estudioso de casos. Como a de uma desengonçada cerimônia religiosa, em que a utopia tradicionalista é interferida por acasos desequilibrados. É uma comédia da vida privada, só que neste caso, pública. Elia também protagoniza seu filme, e, por passagens-esquetes-instantes de atores famosos, como Gael Garcia Bernal, trava um diálogo do ver, respondendo com silêncios e contemplando a estranheza normal do dia-a-dia, como um fantasma. Em reações simétricas e expressivas.
“O Paraíso Deve Ser Aqui”, que nas primeiras cenas já foi aplaudido, constrói um universo estranho e de suspensão do tempo. É um filme picardia. Seu deboche busca potencializar uma crítica à superficialidade comportamental e causal das escolhas. Tudo por uma ambiência parecida com a tipicidade musical do Leste Europeu. É uma história de amor a Palestina. De um filho que roda o mundo, assiste as diferenças geográficas, encontra tipos diversos e retorna com a certeza de se estar no lugar certo. A condução é cômica, mas não busca o riso estereotipado. É essencialmente surreal e com o acostumar à história, nós naturalizamos nosso próprio olhar a uma nova normalidade existencial. O estranho agora é ordinário.
“O Paraíso Deve Ser Aqui” é sobre histórias contadas por uma audição do ver, potencializando o olhar do público pelas micro-ações enraizadas. Entre cúmplices insultos trocados, projeta-se uma nostalgia futurista. Sim, repetindo, são instantes surreais da vida comum (a mecanização chapliniana dos policiais).\ O humor fica sério e aprofunda as questões política-sociais, como a distopia da cena de Nova Iorque, por exemplo. Com interferências musicais (“I Put a Spell on You”, na voz de Nina Simone) e metáforas, como a turbulência de uma avião, tudo parece ser um sonho vivido acordado.
O longa-metragem é um experiência temporal pós-apocalíptica de suas ruas vazias. E ou de robotização humanitária, como outra cena genial do “voo aéreo” de fornecer comida aos moradores de rua. Entre tanques de guerra, experiência “realizador”, festa de Halloween, a livraria Comédia Humana, barulhos ensurdecedores, perguntas desconexas, festa da independência francesa, espaços turísticos sem ninguém, metrô “vulnerável ao perigo”, “O Paraíso Deve Ser Aqui” arquiteta o conflito entre fantasia e realidade. Pesadelos advindos do medo paranoia?
Elia representa a invisibilidade e pode ser um espelho aos outros, inclusive de um passarinho irritante. Daqueles que pensam que palestinos são “lendários”, “exóticos” e com “discursos didáticos”. Seu olhar, que o ajuda a escrever, procura o diferente que se distancia do comum. (Des)padronizar. Assistir tudo do mundo para acalentar seu retorno e fazer as pazes com sua impaciência existencial. Este é um filme homenagem a Palestina. É uma carta que convida os espectadores a entender que ninguém é igual a ninguém. Que precisamos sair de nossas egoístas percepções. Tudo aqui é muito maior do que parece ser. Dentro da estranha condução, uma necropsia social é desbravada. Há quem diga que a comédia consegue atrair muito mais adeptos aos discursos.
Elia Suleiman tem controle absoluto do que quer e do que transpassa em tela. Transcende o próprio cinema político com uma autoral, pessoal, intimista e urgente abordagem cinematográfica, criando um suplicante conto-de-fadas de modernidade atemporal. Sim, talvez as passagens sejam mesmo o céu. E que a felicidade plena esteja no próprio processo de viver.