O Novelo
O frouxo limite tênue da precisão
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Gramado 2021
Traduzir a espontaneidade no cinema talvez seja o desafio mais difícil. É preciso que ambiente receptor amalgame uma sensação naturalista, de pertencimento real, porém ficcionalizada. Há um limite tênue entre a simplicidade agente e a complexidade reagente. Ao aprofundar essa perfeição de linhas, o público consegue se desprender do conceito projetado, embarcando no fluxo vivo do cotidiano. “O Novelo”, de Claudia Pinheiro, estreante na direção em longas-metragens, e integrante da competição ao Kikito de Ouro do Festival de Cinema de Gramado 2021, é um desses exemplos, que comprova o quão árduo é o processo de internacionalizar a naturalidade. Tudo porque nós somos ambientados no cotidiano espirituoso e realista do início (complementado pela atmosfera estética sensorial da câmera desfocada e a música clássica), mas depois o tom se transmuta em um teatralizado ensaio de “linhas soltas” (buscando analogia no próprio título do filme), contracenado por arquétipos comportamentais, mudando o roteiro da água para o vinho.
“O Novelo” conduz sua narrativa por um acontecimento em uma família de cinco irmãos (e um possível encontro com o pai que os abandonou). Cada um em seu núcleo-mundo coral traz uma problematização social a ser discutida (um “emaranhado a resolver”), com seus dramas e olhares e suas vivências, escolhas e particularidades, mas que se unem pelas memórias do tricô, aprendido na infância, com o intuito de “resgatar o valor da família e da irmandade”. Como foi mencionado, o início do longa-metragem imprime um movimentado fluxo vivo de realidade acontecendo, como o café no copo de plástico e a preocupação afetiva de uma funcionária com a dor de estômago de seu “patrão” (“É uma dorzinha, já me acostumei com ela”). O passado aqui não quer soar como digressão, tampouco flashback, intercalando-se assim o antes com o agora. Os ensinamentos de se esperar para ganhar uma pipa com as influências de um mundo do agora, mimado demais para aceitar um não. Por mais que se tente, o espectador não consegue perceber a mudança dessa narrativa para um caminho mais facilitador, pululado de gatilhos comuns, de interpretações mais pensadas e de tempos acelerados e afobados (sem silêncios e possibilidades de reflexão).
A obra parece zerar e começar de novo, em outro filme, mais romanceada a um melodrama novelesco, quando potencializa estereótipos, ainda que com o objetivo primário de os quebrar (como a nudez do banho e/ou o batom da infância), pelo artifício da intimidade, que pode, em muitos casos, permitir liberdades poéticas de uma caseira organicidade das memórias afetivas). Há o advogado “grosseiro” “supersticioso” sem moral (um “pitbull sem fucinheira”); o alcoólatra em recuperação (que sofre as consequências); o gay (o “ser superior chuchu”) que abandonou a família por ser “diferente” (e que só ouve ópera e quer “proteger o namorado deles”); o ator iniciante heterossexual (que já “tentou ser gay” e pegou a mulher do irmão); e por último o “chefe” da família, que cuidou de tohttps://www.youtube.com/watch?v=utZc12HxTb8dos. Todos se apresentam como se estivessem em uma peça light de Nelson Rodrigues, com toques estruturais daqueles filmes de “lavação de roupa” sentimental, por exemplo, “DNA”, de Maïwenn. Também não se sabe o momento exato que o filme “desistiu” de manter a naturalidade, decaindo em forçadas cenas de interpretação pautada mais no efeito dramático que na internalização do papel requerido. Os diálogos ficam mais didáticos, mastigados, quase caricatos, como “elefantes escondidos atrás de uma folha de alface” em uma condição sine qua non, entre discursos de causa e redenção.
“O Novelo” é também um filme de representatividade negra em tela. Em nenhum momento, o ser preto sofre impedimentos. Pelo contrário, é altamente de igualdade internalização. Não se busca o conflito, mas o natural condicionamento. Escrito por Nanna de Castro, formada em Psicologia e Artes Cênicas, que “gosta mesmo de trabalhar com pessoas”, cujo texto foi pensado como teatro adulto, o filme pode encontrar respostas ambientais em sua gênese. Isso nos faz reconstruir a ideia cênica com nossa percepção deste ser mais uma adaptação teatral às telas, que precisa mais desse tom mais de efeito para acontecer. “O Novelo” tem como curiosidade ter começado sua história no Festival de Gramado com a vitória de melhor ator para Nando Cunha (que interpreta aqui Mauro, o irmão “Dona Alzira”). “O ponto está tudo frouxo, precisa ter precisão”, julga com cúmplice picardia. Sim, a máxima crítica nos mostra que “faça que eu digo, mas não faça o que eu faço”. Assim, a impressão final que ficamos é a de um suéter não acabado. Frouxo demais e sem precisão. Em dois filmes unidos querendo ser apenas um.