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O Mensageiro

A memória que absolve

Por Letícia Negreiros

Festival do Rio 2023

O Mensageiro

Lucia Murat viveu a ditadura brasileira na pele e, mais que isso, foi parte ativa na resistência e na luta armada. Tema já abordado algumas vezes em sua filmografia, o regime militar retorna como cerne de seu mais novo longa, “O Mensageiro”. Valendo-se da figura do jovem como ponto inicial da narrativa, Murat permeia aspectos coadjuvantes às questões mais violentas da época, colocando a religião como personagem indispensável à configuração e organização dos pensamentos repressor e de resistência. 

“O Mensageiro” inicia na personificação da dicotomia da juventude nas figuras de Armando (Shico Menegat) e Vera (Valentina Herszage). Extremos ideológicos de ódio caloroso e mútuo, são assim posicionados sem a necessidade de nenhum esforço narrativo. A repulsa, porém, é posta em xeque tão rápido quanto é concretizada. 

Armando, até então apenas mais um soldado, é questionado por Vera o que de fato faz ali – “os outros precisam de informação, você não precisa de porra nenhuma”. Algum tempo depois, na próxima interação de ambos, ele já é um homem mudado. Talvez pela culpa cristã, talvez por uma súbita consciência de classe, com certeza por um pouco de Vera. Desenvolve-se, então, um companheirismo entre os dois. Ele se apieda e se arrisca por ela; ela torna-o mais humano. No entanto, na medida que o personagem de Menegat passa por novos conflitos e desenvolve facetas mais complexas, a personagem de Herszage se limita a humanizá-lo. Vera existe para materializar aquilo de pior que pode vir a existir em Armando. 

A excepcionalidade nesta dinâmica é o modo como Murat transmuta Vera em um fantasma sem matá-la. A ideia da tortura e do sofrimento pelo qual passou, bem como o peso visual do saco preto, ladrão de identidade, assombram Armando ao ponto de impedi-lo de desfrutar de sua vida cotidiana. Também o imaginário do inimigo – a mulher comunista, libertina – infecta a mente do soldado. Em algum nível, ele se torna obcecado por ela e o medo nele condicionado a transforma em um monstro. Tendo consciência da origem de seus pesadelos, decide se afastar do militarismo. Armando é usado como contraponto a todos os outros soldados apresentados na narrativa. Sua convivência com a mulher deixa claro que ele não foi criado para servir ao exército. Essa certeza inicial parece isentá-lo de uma culpa mais profunda e verdadeira.

“O Mensageiro” faz uma distinção do sentimento: a culpa do remorso e a culpa da acusação. Armando reconhece seu papel em tudo aquilo. O fantasma de Vera que habita em sua mente é a punição que ele se impôs. A pena, por mais que dura, não é suficiente. O resto do ambiente em que estão inseridos não encara o homem factualmente como culpado. Era apenas uma alma boa no lugar errado e na hora errada, traumatizado pelo que viu. A conivência presente no ver a tortura e não se opor a ela chega a ser apontada por Dona Maria (Georgette Fadel), mãe de Vera, mas ela é a primeira a perdoar o jovem. Ao ser apontado como covarde por seus companheiros do exército, retrucar chamando-os de torturadores é mais ofensivo. Armando não é tratado pela diegese como parte do problema. 

A religião, no entanto, o faz. O fantasma de Vera se consolida na consciência de Armando embasado na culpa cristã que a tortura desencadeia. O ser cristão é reforçado constantemente na narrativa e também é dual. O cristianismo do regime militar é invadido e manipulado pelo estado. Edificado na igreja do quartel, invadida por um verde bandeira que rouba a atenção dos ícones religiosos do ambiente, ele isenta o militar e o torturador de tudo o que fazem. É um trabalho divino pela pátria. O Estado invade o ambiente religioso e captura seus dogmas e suas verdades, manipulando-as para sua conveniência. 

O cristianismo da resistência toma forma principalmente na figura de Dona Maria e de Padre Jorge (Javier Drolas). Prega, assim como a religião de fato o faz, o amor ao próximo e a caridade. Afirma, inclusive, que o papel da igreja, em um momento como aquele, era de ajudar os necessitados e menos afortunados. Em “O Mensageiro”, são inevitavelmente compreendidos como os presos políticos. Padre Jorge se torna um deles. Nem mesmo no ambiente religioso a oposição ao Estado está isenta de repressão. 

É na esfera religiosa que habita o sopro de complexidade de Vera: sua família, mais especificamente sua mãe. A relação entre a jovem e os pais é confusa. Os flashbacks, perdidos e desconexos em meio ao enredo, mudam a forma como a encara. Em um primeiro momento, taxam Vera como uma jovem revoltada, contaminada pelos ideais de libertação. Mais tarde, quando no presente narrativo ela já é mais um fantasma do que uma personagem, estabelecem uma ligação forte e resiliente entre mãe e filha. O longa não se decide em como enxerga Vera. Indeciso em como definir a filha, faz a mãe de laboratório: Dona Maria passa de uma dona de casa de classe alta – que compreende os males do regime, mas ainda assim não se posiciona contra eles – para uma mulher divorciada e “livre”. Aquilo que a narrativa não consegue decidir se é aplicável a Vera é testado em Dona Maria, mesmo que em momentos opostos do achismo narrativo. 

“O Mensageiro” é, antes de qualquer coisa, uma exigência de Murat para a memória dos torturadores que não foram julgados. Reforçado pelo letreiro ao final do longa, seu desejo de julgamento para esses crimes de guerra é uma necessidade histórica. O longa afirma que perdoar também é lembrar. No entanto, não há perdão sem culpa e não há culpados sem julgamentos. 

3 Nota do Crítico 5 1

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