O Mel é Mais Doce que o Sangue
Helena Ignez, a mascate de metáforas
Por Pedro Sales
Durante o Festival Olhar de Cinema 2023
“Poesia é o impossível feito possível. Harpa que tem em vez de cordas corações e chamas” – trecho de “Este é o Prólogo”, poema de Federico García Lorca
A lua está presa em uma caixa, enquanto pequenas mãos a giram. Entretanto, não é apenas isso que a caixa misteriosa guarda. Dentro dela, poesias, metáforas visuais e provocações para o espectador, seja o que assiste na sala de cinema ou aquele que para na rua e ousa olhá-la. Os versos escolhidos que guiam toda a experiência performática e antropológica de “O Mel é Mais Doce que o Sangue” são do poeta espanhol Federico García Lorca, assassinado em 1936, ano que marcou o início da Guerra Civil Espanhola e o advento fascista de Francisco Franco. O diretor André Guerreiro Lopes, então, articula uma dialética clara entre os poemas quase centenários do poeta espanhol e o contexto atual – à época da filmagem, ainda estávamos no surto de Covid 19, todos de máscaras. Para sua ambiciosa proposta narrativa, em que a poesia é o único texto a ser evocado, o cineasta conta ainda com a presença marcante de Helena Ignez como a protagonista andarilha.
A atriz usando maquiagem indígena carrega uma caixa sobre rodas pela grande São Paulo. Não fala nada, apenas gira uma incessante manivela. Nas ruas, as pessoas olham com desconfiança – alguns até falam de sacrilégio – e curiosidade – eles olham para o que tem dentro da caixa. Assim, Helena se torna uma mascate de metáforas, uma vez que ela sempre está carregando o mistério que está dentro da caixa para todos lugares. Nesse sentido, a obra possui marcadamente um aspecto performático. A atuação está dentro da realidade, o que provoca uma troca genuína com quem atravessa o caminho da andarilha. O que eles veem nessa espécie de câmara escura, precursora do pré-cinema e herdeira dos peep shows, não sabemos. Contudo, o diretor mostra ao público o que pode estar lá. Cabeças falantes, teatros de bonecos e corpos em contato simbolizam, interpretam e personificam a poesia de Lorca. Seja por meio da recitação ou do artifício do off, a poesia é onipresente, em palavras e imagens.
Portanto, é quase impossível não afirmar que “O Mel é Mais Doce que o Sangue” é um filme extremamente sensorial. Os planos enigmáticos que questionam o próprio entendimento da produção poética de Lorca desafiam o espectador. Formalmente, a câmera também adota essa liberdade criativa. Nas externas, está quase sempre na mão se movendo de forma cambaleante, em um estado de embriaguez. Essa decisão faz total sentido com a unidade estilística proposta no longa. A liberdade aqui é a única regra a ser seguida. Dessa forma, André Guerreiro Lopes se apropria cinematograficamente de outras manifestações artísticas. A performance, já citada, e o happening – expressão artística em que é fundamental participação do público, o que gera um caráter de imprevisibilidade – remontam às origens do diretor no teatro, que antes de estar no cinema, foi diretor e ator teatral. Da mesma forma, a música se insere de forma bastante presente no longa, a canção guarani, o sapateado e o batuque em um cenário quase pós apocalíptico dentro do túnel do Rodoanel. O filme, então, é essa amálgama de linguagens, de manifestações e também de ideias, uma confusão boa, que desnorteia e ao mesmo tempo provoca.
Um outro importante aspecto da obra é sua atualidade. O diretor explica que o desejo do projeto era contar a história de Federico García Lorca de forma não convencional, se afastando do filme biográfico, o que de fato acontece. O grande mérito está em trazer os versos do poeta, sem adaptações além da tradução, para a realidade brasileira. A montagem, dessa forma, possui um papel primordial em sincronizar versos e imagens. Quando Helena se encontra com um Guarani na metrópole, o filme adquire seu tom antropológico por meio da transição espacial: da cidade para a comunidade indígena no pico do Jaraguá. O poema recitado em questão diz sobre essa presença da natureza nas cidades, um ponto de convergência com outro filme que esteve no Olhar de Cinema 2023, “O Estranho”. Em outro momento, o poema que trata da Guarda Civil espanhola é facilmente assimilável com o militarismo que (re)criou raízes na política brasileira. Assim, reafirma-se a poesia de Lorca como viva e presente.
“O Mel é Mais Doce que o Sangue” é uma experiência com muitas nuances. Ora é político, enigmático, erótico, provocador e tantos outros adjetivos mais. Mas isso acontece pelo fato de André Guerreiro Lopes reconhecer as diferentes facetas da poesia de Federico García Lorca, que é a força motriz do projeto ao lado de Helena Ignez, detentora física desses poemas guardados em uma caixa misteriosa. As imagens surreais e intrigantes se associam convincentemente e se tornam parte dessa poética. Esta é uma obra que reafirma sua posição experimental, de criatividade. O uso de outras artes, por exemplo, é a principal representação disso, dessa falta de limites, que, por sua vez, tem tudo a ver com poesia. Por fim, nada melhor do que honrar um legado reafirmando sua atualidade, e isso o longa almeja e atinge.