O Lendário Martin Scorcese

O Santo pecador

Por João Lanari Bo

Festival de Nova York 2025

O Lendário Martin Scorcese

O Lendário Martin Scorcese”, série em cinco capítulos dirigida por Rebecca Miller recém-lançada na Apple TV, traz muita informação, mergulha na “alma” do diretor – como é sabido, ele gosta de usar vocabulário religioso para expressar dúvidas e anseios existenciais – embora, hélas, deixe lacunas e interrogações sobre as múltiplas atividades desse incansável artista e produtor. As pouco mais de cinco horas de duração podem revelar-se insuficientes, mas isso não impede a apreciação (e fruição) da série, certamente a mais completa incursão na obra do realizador, com direito a retratos íntimos enunciados com franqueza e sinceridade.

A palavra “sinceridade” tem, no caso de Scorcese, uma acepção especial – ele teve uma formação católica intensa, uma espécie de refúgio diante do ambiente tumultuado da comunidade ítalo-siciliana que cresceu em Nova York. Chegou a encaminhar um futuro de sacerdócio, mas o projeto não andou. Um padre foi fundamental na sua formação, Frank Principe: ajudou o jovem pupilo a expandir horizontes culturais para além do seu bairro, encorajando-o a encarar sua posterior obra sob uma perspectiva moral. Nesse sentido, “O Lendário Martin Scorcese” pode ser visto como uma quase hagiografia de alguém obcecado por escolhas morais – suas, dos que estão à volta e dos personagens. Como ele diz, o problema é que você gosta do pecado.

Isabella Rossellini, sua terceira esposa, resume bem: eu diria que Marty é um santo e um pecador. Alguém, enfim, sempre fazendo perguntas sobre o bem e o mal, mas muitas vezes agindo de maneira, digamos, pouco católica.

É Scorcese quem afirma, se você tem um dom como cineastaesta é uma conexão religiosa. O problema, para usar seu estilo retórico de autoanálise, é que ele cresceu em um ambiente permeado pela máfia – apesar de seu pai não ter sido um mafioso, sofreu consequências e humilhações, como na mudança forçada de Corona, bairro no distrito de Queens em Nova York, para o Little Italy, em Manhattan. A qualidade de vida caiu drasticamente: em Corona, a família habitava uma pequena casa com quintal, em Manhattan foi morar em um cortiço, como se refere a mãe do cineasta, três ou quatro cômodos divididos com outros (e muitos) membros da família. A mudança foi exigida pelo capo local da máfia: o pai resistiu e foi agredido publicamente. O trauma, obviamente, foi fundo na “alma”.

Circunstâncias infantis são recorrentes na formação imagética do diretor, se assim podemos dizer – asmático, passou muito tempo vendo a rua da janela do apartamento, ponto de vista reproduzido inúmeras vezes em seus filmes. Na rua, já adolescente, assimilou um tipo de fluidez urbana necessária para sobreviver diante dos “durões” rivais, que traduziu para as telas também, com as edições ágeis de transições temporais dos personagens, em particular de mafiosos – “Os Bons Companheiros”, de 1990, é um clássico exemplo. Mais tarde, em um dos pontos de virada no seu depoimento em “O Lendário Martin Scorcese”, é quando assume a opção de estudar cinema em uma universidade, a NYU. Funcionou como libertação para o jovem Martin, escapatória inevitável para o ambiente sufocante, embora carregado de afetividade, em que vivia. Na minha casa, disse, simplesmente não havia livros.

A partir desse ponto, a série ingressa no universo ficcional de Scorcese, sua determinação e talento patentes desde o início das produções estudantis, como “It’s Not Just You, Murray!”, de 1964, e “The Big Shave”, de 1967, influenciadas pela nouvelle vague francesa e o neorrealismo italiano (este último conhecido desde criança nas sessões na tarde de domingo da TV, voltada para a comunidade italiana). Um breakthrough profissional, apesar de mal recebido por críticos (e amigos), foi “Sexy e Marginal”, de 1972, produzido pelo impagável Roger Corman. O principal expoente do cinema independente à época, o talentoso ator e diretor John Cassavetes, foi taxativo: o filme é uma piece of shit, mude logo seu enfoque. Scorcese ouviu, na sequência conheceu o parceiro Robert De Niro e realizou “Caminhos Perigosos”, inspirando em personagens e situações do círculo de vizinhos e companheiros próximos.

Em 1976, a consagração veio com “Táxi Driver”. Se foi tarefa impossível da série falar de todas as realizações de Scorcese – como “O Irlandês” – cabe mencionar ainda as extensas revelações que fez a respeito dos momentos difíceis que passou, relacionados ao consumo de drogas e colapsos nervosos, superados graças aos esforços médicos e apoio de amigos.

Esses depoimentos, aliados às narrativas pessoais, dão a “O Lendário Martin Scorcese” um lugar especial nas séries biográficas disponíveis no streaming.

4 Nota do Crítico 5 1

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