O Intérprete
Melodrama e política
Por João Lanari Bo
Festival de Toronto 2020
Se você acredita, como os gregos acreditavam, que o homem está à mercê dos deuses, então você escreve tragédias. O fim é inevitável desde o início. Mas se você acredita que o homem pode resolver seus próprios problemas e não está à mercê de ninguém, provavelmente vai escrever melodramas (Lillian Hellman)
“O Intérprete”, realizado em 2020 por Rana Kazkaz e Anas Khalaf, é o que se convencionou chamar de melodrama político. Nas Olimpíadas de Sydney em 2000, Sami (Ziad Bakri), intérprete da equipe olímpica, comete um deslize, proposital e fatal. Questionado sobre a ascensão de Bashar Assad na presidência síria, sucedendo seu pai (Presidente Hafez Assad) recentemente falecido, um atleta-boxeador repete, em árabe, a versão oficial: o povo sírio lamenta a morte de Hafez Assad. A pergunta procurava chamar a atenção para o aspecto autoritário e nepotista da transição de poder. Sami, no entanto, traduz alguns sírios no lugar de povo sírio, desagradando, obviamente, as autoridades. A consequência foi imediata: o tradutor não voltou para seu país de origem, e acabou obtendo o status de refugiado político na Austrália. O poder das palavras e a necessidade de relatar a verdade são temas centrais do filme – e a hesitação de Sami revela sutilmente esse princípio. Sua adaptação no democrático país que o acolheu vai instalar nele, não obstante, um inevitável sentimento de culpa, pelos familiares e amigos que deixou para trás, na Síria atravessada por autoritarismo e repressão política.
O enredo de “O Intérprete” vai desdobrar-se em 2011, dez anos depois do deslize tradutório de Samir em Sidney. A Síria está novamente às voltas com surtos de violência: as imagens da Primavera Árabe que sacudiu o Oriente Próximo, incluindo manifestações na sua cidade natal, assombram Samir. Quando seu irmão desaparece, começa a pensar em retornar para tentar descobrir o paradeiro de Zaid e aliviar a culpa que sente por viver uma vida confortável na Austrália. O convite do jornalista e amigo Chase (David Field) para acompanha-lo à Síria vem na hora certa. Eles entram pela fronteira com o Líbano, escondidos num caminhão carregado de ovelhas. Os acontecimentos que se sucedem estão imersos na atmosfera repressivo-ditatorial que caracteriza o regime de Bashar Assad, o filho de Hafez, oftalmologista formado em Londres: detenções sumárias, torturas e assassinatos. O entorno de familiares e amigos de Sami sofre, inevitavelmente, com essa iminência de ações brutais. Quando a barra pesa, é na cunhada Karma (Yumna Marwan), médica (também oftalmologista!), que Sami se apoia, mesmo enfrentando cinismo e até desprezo daquela que é a mulher de Zaid. No meio da tensão, sua irmã LouLou (Sawsan Arshid) está grávida e acaricia seu passaporte australiano como se fosse a tábua de salvação da existência terrena.
O gênero melodrama tem por desígnio expressar todos os sentimentos: a moral está no centro da ação dramática, mesmo que de forma oculta. O objetivo é que o público possa experimentar sensações catárticas através da trama que está acompanhando. Em 1980, o jovem Samir ouve no rádio notícias sobre manifestações de protesto que ocorrem em frente de sua casa, à qual seu pai foi participar: ouvem-se tiros, ele o irmão Zaid saem atônitos e veem o pai ser espancado e jogado em uma van da polícia, para nunca mais ser visto. Naquele ano, Hafez al-Assad, que foi Presidente da Síria de 1971 até falecer no ano 2000, liderou conflito armado contra grupos de oposição e sunitas, corrente majoritária no islamismo, na cidade de Aleppo, a segunda do país. Tradicionalmente vista como a cidade mais importante da Síria depois de Damasco, era um importante centro para a oposição democrática e secular do país, bem como para a oposição islâmica armada. As forças do governo cometeram vários massacres durante a operação: estima-se que cerca de duas mil pessoas foram mortas, seja durante confrontos, aleatoriamente ou como parte de execuções sumárias.
A Síria tem uma longa história de repressão política. O país ficou sob estado de exceção de 1963 até 2011, o que dava as forças de segurança a possibilidade de prender qualquer pessoa sem declarar o motivo. Em 2011, eclode a guerra civil, que opõe o regime de Bashar Assad a um conjunto heterogêneo de forças rebeldes – e a exceção tornou-se ainda mais arbitrária. O caos se agravou com a entrada do Exército Islâmico na contenda, além das interferências dos EUA e Rússia. “O Intérprete” cria uma ficção particular (e plausível) nesse cenário de terror e despotismo.