Curta Paranagua 2024

O Homem Invisível

Desafio para os Olhos

Por Jorge Cruz

O Homem Invisível

O cinema norte-americano (assim como a televisão) adora “O Homem Invisível” como nenhuma outra obra de H.G.Wells. Com inúmeras adaptações em seriados e animações, a montagem mais fiel ao romance foi dirigida por James Whale e lançada em 1933, dois anos depois do cineasta levar aos cinema “Frankenstein“. A geração “tv a cabo” lembra da montagem ultramoderna que Paul Verhoeven lançou em 2000, recebendo em português o título “O Homem sem Sombra“. Coube à Leigh Whannell, autor dos três primeiros “Jogos Mortais“, dirigir e roteirizar essa visão Blumhouse da clássica história. O resultado não poderia ser melhor, conseguindo aliar todas as questões de representações e representatividades com o máximo de surpresa possível que uma história de mais de cem anos consegue permitir. Ainda bem que a produção sobreviveu ao cancelamento da recriação do “Universo Sombrio” que a Universal desistiu após o fracasso de “A Múmia” (2017).

Elisabeth Moss tem um difícil trabalho de construção de protagonista. Cecilia Kass precisa nos convencer (será mesmo?) logo nos primeiros minutos da necessidade de fugir do relacionamento abusivo com o marido Adrian Griffin (Oiver Jackson-Cohen). “O Homem Invisível” não quer entrar na seara dessa versão. A visão de mundo que nos é colocada é a da personagem e o espectador que lide com isso. Sendo assim, comprar a ideia, acreditar no que está passando pelos seus olhos é um exercício de fé – aliás, como qualquer outra obra do estúdio que ganhou reverberação nos últimos anos. Há uma muleta narrativa estilo Cinderela um pouco incômoda aqui, caso sua aceitação seja a da visão mais purista da história. No meio de tantas coisas, a protagonista deixa cair justamente o frasco de remédio fundamental para o andamento do segundo ato. Os mais céticos, que aceitam a o confronto com a versão oficial dada pelo filme, acharão ainda mais genial. Passadas duas semanas do da fuga tratada na avassaladora cena inicial, Cecilia recebe a notícia de que Adrian faleceu, lhe deixando cinco milhões de dólares em parcelas de cem mil.

As atualizações temáticas de “O Homem Invisível” são cumpridas com louvor. Não apenas por se valer da neurose de se sentir sempre vigiado (representada visualmente na cena em que a protagonista cobre a câmera de seu notebook – quem nunca?), mas principalmente por não deixar que o protagonismo feminino fosse um mero detalhe. A carga metafórica do longa-metragem supera com gosto boa parte da filmografia pseudo-cult que os Estados Unidos nos tenta oferecer há alguns anos. O que começa como uma trauma causado pelo medo do retorno do marido abusador, vira um leque de referências que nos faz querer abraçar a versão de Cecilia. Tal como “Bacurau“, é um filme que se presta para as duas visões de mundo – apesar da interpretação mais próxima da misoginia exigir uma capacidade interpretativa que poucos da turma terão.

Pensar a morte de Adrian como uma metáfora (até porque, de fato, ela não existiu) é imergir no mundo das mulheres que seguem sendo condenadas e boicotadas pelos ex-parceiros abusivos. Uma realidade em que oportunidades de trabalho, relacionamentos e amizades são inviabilizados por uma destruição de reputação que as impede de continuar. Da mesma forma, o longa-metragem é brilhante ao transpor a falta de credibilidade da voz da mulher em qualquer situação. Seria de se estranhar, claro, que acreditassem que o marido morto na verdade estivesse por aí andando invisível. Todavia, as mínimas fundamentações, como o fato de ter seu computador invadido para mandar um e-mail para a irmã, não são aceitas. Aos poucos a visão sobre a suposta loucura de Cecilia acabe lhe sendo imposta, restando apenas essa opção. O isolamento de familiares e amigos ajudam a chegar a essa condição.

Nesse ponto que reside a genialidade da interpretação de Moss. Ela nunca deixa, mesmo que sutilmente, o espectador mais atento embarcar nessa empatia forçada. Nuances em seus olhares nas cenas mais agudas fornecem munição para que mais de uma visão sobre o que se passa ali possa ser partilhada. Suas demonstrações de fraqueza e insegurança se inciam quando ela sente o esgotamento por estar em ambientes que não lhe dão crédito, não mais do que isso. A direção de Whannell se força a ser convencional, se destacando apenas quando usa a perspectiva das duas personagens principais – mais sequências nesse estilo fariam de “O Homem Invisível” ainda mais espetacular. Mesmo assim, consegue usar o mesmo objeto de “terror da vida real” (a partir de uma sociedade que impõe à mulher uma rotina de violência) das primeiras temporadas de “Bates Motel“, em que a Norma de Vera Farmiga vive uma multiplicidade de abusos desde a infância. Só que aqui ainda se permite ousar desconstruir essa sacralidade do tema, dando munição para que se subverta. Cecilia não é a mulher fatal, seu corpo não é um objeto, mas está longe da pureza no olhar das mocinhas datadas de antigamente.

Tal como uma cartilha, o uso da água como elemento do terror e o perturbador barulho da chuva na grande cena do filme, é um aspecto pouco sentido por ser um expediente já muito utilizado. A primeira metade da obra é marcada por um ritmo tão amarrado e aprisionante como a maneira com a qual Adrian põe em prática o plano de sofrimento trôpego da esposa. Não chega a ser uma gradação do horror, pelo contrário, esse fator está ali desde a primeira cena. Contudo, o longa-metragem parece querer te envolver, testando sua capacidade de desapego quando lhe exigir mais adiante. Para aqueles que embarcarem na viagem, a sensação será, sim, de total envolvimento. Ainda mais que o último ato ainda terá início com a grande arma contra a sanidade feminina: a vitimização masculina.

As formulações de “O Homem Invisível“, por mais que fujam da maneira como Wells desenvolveu o material original, passam longe de serem frescas. A Cecilia de Elizabeth Moss tem trajetória bem parecida com Libby, personagem que Ashley Judd interpretou em “Risco Duplo” (1999, aquele ano mágico para Hollywood). Aliás, esse longa-metragem, sucesso nas reprises do Supercine – sessão de sábado à noite na Globo – além de ser citado por dez em cada dez professores de Direito Penal e Processual Penal no período da minha faculdade (não diremos porque para não dar spoiler, apesar do filme ter mais de vinte anos), é a prova de que os Estados Unidos consegue entregar cinema de gênero comercial de qualidade quando quer. Nos últimos anos, parece ter ficado a cargo da Blumhouse nos permitir bons filmes em cartaz na despretensão de um domingo no shopping.

4 Nota do Crítico 5 1

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