O Grão
História de perdas
Por Pedro Sales
A representação sertaneja na arte brasileira é notadamente marcada por certos padrões, como a pobreza e as dificuldades. O quadro de Cândido Portinari, “Retirantes”, talvez seja um bom exemplo disso. Apesar da produção artística quase sempre focar nestes aspectos, fato é que este é um movimento relativamente recente. A preocupação em retratar o povo nordestino com maior profundidade surge concomitantemente ao movimento de valorização nacional do século passado. Mas, se no discurso e no imaginário popular o sertanejo apenas lida com a fome e pobreza, é necessário retornar a Euclides da Cunha: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”, para entender a verdadeira essência desse povo. No cinema, a partir do Cinema Novo, o sertanejo é representado dessa forma, aliada a uma postura crítica, de denúncia. Entre a força no viés político, cabe também a força no sensível, como acontece em “O Grão“, longa de estreia do diretor Petrus Cariry, recentemente homenageado em retrospectiva na Caixa Cultural, no Rio de Janeiro.
Uma família vive no interior cearense. O pai cria bodes, a mãe cuida dos afazeres domésticos, a filha sonha com casamento, o filho brinca e vai para escola, e a avó doente parece apenas esperar pelo fim. Portanto, trata-se de um longa sem muitas sofisticações narrativas, Cariry parte dessa unidade familiar simples para enfim aprofundá-la. A primeira forma de fazer isso é por meio da rotina, apresenta-se o que cada um faz e seus anseios. É quando se descobre que Perpétua (Leuda Bandeira), a avó, está doente. O caráter poético que toma todo o longa, dos monólogos às imagens, materializa-se de forma bastante concreta na relação avó-neto. Para os outros da casa, Damião (Nanego Lira), o pai, Josefa (Verônica Cavalcanti), a mãe, e a filha Fátima (Kelvya Maia), o fim é uma questão de tempo. Entretanto, para o pequeno Zeca (Luís Felipe Ferreira), isso sequer é uma ideia.
A forma que a avó encontra para ambientá-lo com essa ideia é por meio de uma história. Como Sherazade, de “Mil e uma noites”, a avó conta um pedaço a cada noite. A narração dela, então, exerce um papel metanarrativo que antecipa ao espectador e também ao menino qual será o fim, embora em um primeiro momento não pareça para ele uma metáfora. Há muita sensibilidade de Cariry em “O Grão” ao fazer do primeiro contato com a morte ainda sim uma troca entre os dois, uma tentativa de preparar a criança para o que é inevitável, mas construindo memórias. Nesses momentos, a câmera alterna a contação em uma voz cansada com a audição atenta infantil. O quarto é iluminado apenas por uma vela e nisso os planos constroem muito bem essa dicotomia entre luz e sombra, que pode se estender, a depender da leitura, na própria representação de vida e morte.
Na realidade, ao longo do filme existem muitas cenas que trabalham com luz e sombra, sobretudo as internas. A fotografia, assim, é quase barroca, em um frequente embate entre claro e escuro. Essa sensação de pintura também é exercida pela duração dos planos. Cariry dedica vários momentos contemplativos com a câmera estática. Às vezes, até mesmo da casa vazia, natureza-morta. Por esse motivo, a obra flerta muitas vezes com o documental. A câmera imóvel que capta as conversas na casa, o pastoreio dos bodes ou o trabalho manual de Josefa reforça um viés observacional, como se captássemos aquela realidade. Naturalmente, esse recurso é mais usado na introdução e, portanto, no estabelecimento da rotina familiar. Ou seja, há no geral pouca movimentação, salvo algumas panorâmicas discretas e alguns travellings – quando a câmera se desloca lateralmente -, o primeiro evocando liberdade na garupa de uma moto e o outro em um retorno para casa e encontro com o novo.
No início deste texto, foi exposto que muitas vezes a representação do sertanejo se restringe à “pobreza e dificuldades”. Isso se dá muito mais em razão de quem representa, do que quem são representados. Em “O Grão“, as dificuldades, por assim dizer, são evidentes, mas isso não é o mote do filme. Cariry não faz um retrato generalista de um povo, pelo contrário, ele destaca os indivíduos em detrimento dessa coletividade. De certa forma, o máximo de generalismo que há no longa é o conflito geracional. Fátima quer ir para Fortaleza, deixar “o fim de mundo”, como a própria mãe diz. Ela quer sair daquela realidade e, nesse sentido, os fones de ouvido, um objeto de cena tão mínimo, já parecem demonstrar as diferenças entre filha e os pais. Damião, mesmo com seu problema com apostas, tal qual Fabiano em “Vidas Secas”, também não quer repetir a paternidade que teve. Em um monólogo, ele explicita as diferenças com a filha e seu desejo de se mudar, “aqui nasceu, aqui tem que ficar”. Dessa forma, ao focar no indivíduo, Cariry consegue se aprofundar subjetivamente em conflitos, dúvidas e nas dificuldades, porém sem nunca fazer disso algo exploratório ou uma “cosmética da fome”, muito comum em cineastas que desconhecem as realidades que retratam.
“O Grão” é um filme intimista que convida o espectador às entranhas de uma família comum, com desentendimentos, problemas e que lida com a iminente morte da matriarca. A câmera estática é uma forma de adentrar aquela realidade, sobretudo pelo caráter observacional, como quem espia a avó e o neto, ou a família jantando em frente à televisão. Esse tom poético que Cariry evoca com a dilatação do tempo corrobora para a reflexão. Na verdade, faz com que o público compartilhe da reflexão desses personagens, como Josefa sentada no barco olhando o rio. Assim, o que existe é um retrato sertanejo mais essencial, que demonstra suas forças, lutas e, mais importante do que isso, suas emoções, em uma abordagem e direção com atuações naturalistas, gerando realismo. É uma história de perdas e dos desafios de preservar a coesão familiar. As perdas podem estar atreladas à morte ou não, pode ser uma filha que se olha de vestido na frente do espelho, planejando uma vida na capital. A outra, mais palpável, é perceber que quando pergunta ao pai se ela volta, o silêncio é resposta, e a história de antes finalmente se revela, não há grão de mostarda preta que possa evitar o que é natural.