O Espião Inglês
O homem-correio
Por João Lanari Bo
Festival de Sundance 2020
“O Espião Inglês”, longa dirigido por Dominic Cooke, ficou pronto em 2020, quando estourava no mundo a pandemia do vírus corona – desnecessário sublinhar, sua distribuição nas salas foi abalada. Sobreviveu no streaming um pouco escanteado, como se fora mais um telefilme comum. Entretanto, a presença de um ator excepcional, Benedict Cumberbatch, aliada a uma temática que tem sempre um público atiçado, espionagem e guerra fria, garantem a permanência do filme, agora talvez conectado – por alguma cadeia de transmissão oculta no imaginário cinematográfico – com o atual quadro de tensões na cena internacional, em particular com a invasão da Ucrânia e a guerra que se seguiu.
A famosa frase de Karl Marx, “a história se repete, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”, expressa a ideia de que eventos históricos podem se repetir, mas com características diferentes, sendo a segunda ocorrência menos séria e mais caricata do que a primeira. A Guerra Fria, uma espécie de estado latente de um conflito EUA x URSS com potencial devastador – dados os respectivos arsenais nucleares – vigorou desde os últimos anos da década de 1940 até a derrocada do comunismo, em 1991.
A tese: à medida em que a Rússia resolveu afiar os dentes, e os norte-americanos cada vez mais ciosos de exercer o papel de polícia global, estaríamos assistindo à Guerra Fria em sua segunda temporada, dessa vez como farsa. Concorre para essa percepção o perfil dos dois comandantes, Putin e Trump, que seriam, nessa ótica, dois “farsantes”.
Farsa ou não, paira uma tensão no ar, diz a sabedoria popular. “O Espião Inglês” é baseado em fatos verdadeiros: o recrutamento de um caixeiro-viajante, de vida pacata e banal com esposa e filho em Londres, para contatar um oficial de alta patente da inteligência militar soviética, disposto a vazar informações sobre o programa nuclear de seu país. Os anos de 1960 mal começavam e Guerra Fria aproximava-se do que talvez tenha sido seu momento mais dramático, a crise dos mísseis em Cuba. A CIA e o conhecido MI6, o mesmo que empregava James Bond, abordaram Greville Wynne (Cumberbatch) para essa espinhosa tarefa, justamente porque ele era um civil ordinário, poderia entrar e sair de Moscou sem chamar a atenção – e Wynne, vendedor de artigos eletro-eletrônicos, já era viajante assíduo em países da órbita soviética, como a ex-Tchecoslováquia.
Do outro lado do balcão estava Oleg Penkovsky (Merab Ninidze), o coronel soviético – como Penkovsky tinha a tarefa de roubar segredos tecnológicos ocidentais, seus colegas viam o relacionamento como vantajoso para a Rússia, sem perceber que os documentos fluíam na direção oposta. A partir daí, “O Espião Inglês” se desenrola em ritmo acelerado, com cenas curtas e movimentadas, fluindo na esteira da trilha sonora de Abel Korzeniowski, inspirada em Philip Glass. Wynne exibe uma energia divertida e ansiosa, perguntando-se de vez em quando “que diabos estou fazendo aqui?”, mas apreciando seu novo “business”. Oleg responde calorosamente, trata-se de um bom homem em uma situação difícil, que demanda coragem. Logo uma amizade floresce entre eles, com a naturalidade que se espera de um contato comercial.
Um espião sobrevive, como é sabido, em um mundo paralelo, sempre um passo à frente da vida burocratizada que nós, os mortais, experimentamos. Esses sujeitos-invisíveis operam com a própria personalidade, excitados com a esquizofrenia autoimposta com que trafegam no meio social. Wynne é um amador, Oleg um profissional. Na mitologia que se criou do episódio, a partir do momento que o caso veio à tona – cobertura midiática, livros – Oleg passou a ser considerado como “o espião que salvou o mundo”, o agente duplo mais valioso do Ocidente na Guerra Fria e o homem que arriscou sua vida para impedir uma guerra nuclear entre superpotências.
Não é pouca coisa, certamente, mas o mundo da espionagem é algo por definição pantanoso e ambíguo, cheio de traições e traições de traições – mal comparando, funciona como um meio similar à famigerada dark web, onde a única regra que vale é que não existem regras. Por outro lado, a certeza de que dispomos é que o apocalipse nuclear sugerido pela crise dos mísseis em Cuba não aconteceu – pelo menos por enquanto. É possível que o feito de Oleg tenha parte nisso.
Os recursos cênicos de Benedict Cumberbatch permitem que a narrativa, em princípio desprovida de conflitos agudos e inquietantes, encaminhe-se para um desfecho, digamos, intenso. Só resta imaginar quem seriam os Wynne e Oleg do século 21.