O Enigma da Rosa
Exposição Putrefata
Por Jorge Cruz
Thrillers que deixam o espectador quase tão perdido quanto os personagens costumam dar um peso enorme à sua conclusão. É fácil lembrar de exemplos bem-sucedidos como “Oldboy” (Park Chan-wook, 2003). O mesmo não podemos falar do fenômeno contrário. Bons suspenses que se perdem em uma revelação clichê ou desproporcional à angústia provocada pelo caminho costumam ser deletadas dos cérebros cinéfilos. O espanhol “O Enigma da Rosa” se enquadra no gênero, ousa apostar no poder de sua reviravolta e é bem sucedido em seu intento.
A temática do filme é bem parecida com a do curta-metragem “Madre”, de Rodrigo Sorogoyen, já que envolve o sumiço de uma criança e o desespero de seus familiares. Na obra indicada ao Oscar de 2019 na categoria a ela direcionada a câmera fica estática, mostrando a amplitude da sala, com a mãe e avó da criança transitando quase em um plano-sequência. Já em “O Enigma da Rosa” o diretor, roteirista, montador, fotógrafo e produtor Josué Ramos vai por outro caminho. Usando a câmera na mão, bem próxima dos personagens e em constante movimento, ele dá um toque documental ao filme ao mesmo tempo que se coloca como um participante da ação. Essa expediente empregado, além de manter a tensão nas alturas, deixa a angústia tomar conta do espectador.
O roteiro se pauta pela simplicidade. Ele nos apresenta Sarah, uma menina que tem seu boletim descoberto pela mãe, Julia (Elisabet Gelabert). Em virtude de uma nota baixa em Matemática, ela recebe um castigo antes de ser levada à escola. Mais tarde, a mulher conta o ocorrido ao seu esposo Oliver (Pedro Casablanc) e eles se dão conta de que não foram buscar a menina no colégio. Acostumados a terceirizar seus afazeres, não era possível que a garota voltasse para casa sozinha em virtude de uma greve do transporte e isso passou despercebido aos dois. Ao se dirigirem à escola eles descobrem que Sarah sequer foi à aula naquele dia. Ou seja, ela estava há horas desaparecida.
É possível encarar “O Enigma da Rosa” apenas como um suspense forte, com doses cavalares de violência psicológica. Todavia, há uma construção de debate bem valiosa em seu subtexto, principalmente na formatação do trio de personagens principais: Julia, Oliver e Alex (Zack Gómez), filho mais velho do casal. Enquanto Julia se mostra no prólogo como uma mulher independente, forte e destemida – que cobra bons resultados escolares da filha para que ela “seja alguém na vida”, Oliver é o exemplo da negligência. Só fica sabendo das notas da menina uma semana depois e não consegue incluir em sua rotina compromissos relacionados à ela. Alex surge como um adolescente recluso, que os pais tampouco sabem o que anda fazendo.
Neste ambiente surge Bruno (Ignacio Fernández), representante dos sequestradores que transforma a noite de desespero da família em uma espécie de jogo. Ele propõe devolver Sarah sem nenhum arranhão desde que um dos parentes conte um grande segredo escondido. Uma vez exposto o que um deles considera o que mais de sujo foi cometido, o antagonista aplica uma espécie de Lei de Talião àquela pessoa. A partir daí “O Enigma da Rosa” se desenvolve como uma temporada do clássico trash da TV brasileiro “50 por 1”, que Álvaro Garnero apresentava nas madrugadas de domingo no Rede Record. Da mesma maneira que ao final de cada episódio ele dizia “esse ainda não é o destino que estava procurando”, Bruno termina de aplicar a pena do réu-confesso dizendo “esse ainda não é o segredo que estava procurando” e desafia um novo familiar a desvendar um novo segredo.
Referenciando “Jogos Mortais”, a exposição de violência do filme não chega a agredir. A intenção de Josué Ramos é mostrar como a classe média, sempre tão assoberbada com seus compromissos, não se priva do prazer e sucesso pessoal para pensar na integridade e bem-estar do outro. Concentrando boa parte do tempo de tela na ação que acontece na mesa de jantar da família, o longa-metragem lembra, sem o mesmo preciosismo, as interações de “Amores Brutos” (Alejandro González Iñárritu, 2000), apesar de não ser episódico. A diferença é que somos levamos às profundezas do maior temor daquelas pessoas: a humilhação – observando como elas reagem ao sofrer na pelo o que outros passaram por sua culpa.
No terço final duas inconsistências são identificadas. A primeira é que Ramos abdica algumas vezes da linguagem estética construída durante o filme, tornando ele mais tradicionalista injustificadamente. A segunda é que há um momento de ingenuidade nas interações sociais, com escolhas não apenas equivocadas mas até mesmo inverossímeis dos quatro personagens que dividem quase todas as cenas. Uma volta a mais que o roteiro dá para acabar retornando ao ponto onde estava antes, permitindo chamar a fase final do segundo ato de “gordura”. Porém, a conclusão de “O Enigma da Rosa” reforça o impacto da obra. Há uma mensagem em toda essa perturbação violenta do longa-metragem direcionada a quem se choca com as soluções encontradas por aquelas pessoas. O espectador que se incluir nesse rol pode interpretar a justiça feita pelas próprias mãos como um caminho inaplicável. Se for isso, ele pode dizer que atingiu uma conclusão revestida de humanidade, um sopro de esperança no meio de uma massa que vibrará com todo o sadismo derramado na tela.