O Deserto de Akin
Areias e cobras
Por Vitor Velloso
Festival do Rio 2024
O novo filme de Bernard Lessa, “O Deserto de Akin”, procura traçar comentários sobre a realidade política e social do Brasil contemporâneo, por meio da perspectiva do protagonista Akin (Reynier Morales), um médico cubano que trabalha no país pelo programa Mais Médicos, em meados de 2018, e de sua relação com Érica (Ana Flavia Cavalcanti) e Sérgio (Guga Patriota). O longa busca explorar aspectos da intimidade do trio, ao mesmo tempo que explicita a polarização política construída no Brasil, especialmente no contexto das eleições daquele ano.
Contudo, à medida que o projeto se esforça para entrelaçar suas temáticas, torna-se cada vez mais superficial, pois tem dificuldade de encontrar um caminho específico a ser seguido, costuras a serem feitas e bases contextuais a serem estabelecidas. Tudo é atirado às pressas, sem base dramática e de forma desengonçada. A primeira menção a Bolsonaro, após um personagem anunciar que será pai, é tão descontextualizada que choca o espectador. A exposição se dá de forma aleatória; mesmo que seja possível compreender o motivo da inserção naquele diálogo, não há transição, desenvolvimento ou encaminhamento que a justifique.
Por outro lado, esse esforço de trabalhar a perspectiva de um Brasil desarranjado por um futuro inevitável faz de “O Deserto de Akin” um filme que poderia discutir melhor o papel da saúde pública no país — especialmente considerando os acontecimentos de 2020 em diante —, a necessidade de um debate público minimamente razoável ou mesmo como a percepção de uma realidade violenta, estabelecida no contexto da eleição do antigo presidente, foi estruturada por meio da manufatura da opinião pública, seja por veículos de comunicação, redes sociais etc.
Entretanto, o filme parece se contentar com a articulação mais simplória possível em cada um de seus segmentos. A perspectiva da violência é apresentada por meio de personagens que demonstram atitudes ou reações violentas em situações controladas. O medo dos personagens é sugestivo, mas não levanta nenhum tipo de debate. O papel da saúde pública e dos serviços prestados pelo SUS — Sistema Único de Saúde — até é abordado no desenvolvimento da narrativa, mas apenas reforça a caracterização que alimenta a própria polarização: uma narrativa superficial, baseada na dicotomia “nós x eles”, na manutenção de uma imagem em que o Brasil estaria condenado à desgraça (com um diálogo explícito e bastante desconectado), e de que o fascismo estaria se aproximando (representado pela imagem constante de uma cobra). Contudo, ambas as “questões” não passam de silhuetas tão mal exploradas que se tornam constrangedoras:1) Por representarem a visão de um pensamento pequeno-burguês, tão presente naquele contexto; 2) Por não encontrarem um caminho claro a ser desenvolvido dentro de uma trama que tem dificuldade de definir seu próprio objetivo.
O diretor parece tão obstinado em abarcar um grande número de temáticas e discussões que acaba não desenvolvendo nenhuma delas de forma consistente, tampouco articula uma estrutura que permita construir algo a partir disso. E, por mais que haja a intenção de demonstrar como esse medo se manifesta nos personagens — representando de forma quase cínica uma parcela da sociedade —, “O Deserto de Akin” não apresenta ideias próprias e parece ter receio de confrontar a realidade do país. Ao recorrer ao fácil artifício do homem irritadiço no bar, incomodado por conta de um broche, e ao decidir se afastar do debate público real, deixando que apenas os sons de rádio, TV e internet conduzam essa exposição, o filme passa a exotizar suas próprias questões, temáticas e personagens.
Aliás, o faz de tal maneira que retira parte da humanidade dessas pessoas, transformando-as em arquétipos de uma suposta discussão que, no fim das contas… não sabe como se articular. “O Deserto de Akin” possui intenções políticas claras e encontra na questão da saúde, uma boa margem de discussão para sua realidade concreta, mas sua dificuldade de relacionar temas, definir objetos e estabelecer um caminho e diretriz para seus objetivos é tão grande, que desmorona antes mesmo de construir. É uma pena que um projeto que trabalha justamente com o que viria ser o maior crime cometido pelo antigo presidente, seja apenas uma exposição entre todas as temáticas que vão se aglomerando sem base dramática sólida. Aliás, quando vemos Akin encarar o homem furioso, que acabou de agredir seu amigo, e permanecer imóvel, temos a clara representação de como essa pensamento pequeno-burguês progressista trouxe alguma recompensa ou senso de “justiça”.