Telecurso para a Nova Era
Por Jorge Cruz
Definir em que o momento a receita de país do futuro desandou tem sido um exercício divertido para muitas pessoas. Alguns atribuem à derrota por 7×1 da Seleção Brasileira para a Alemã na semifinal da Copa do Mundo em 2014; outros menos fanfarrões abordam os novos tempos a partir do movimento de forças políticas nas Jornadas de Junho de 2013. No meio termo entre as versões fantasiosas e acadêmicas, podemos incluir o fim do Telecurso 2000 em TV aberta como um ponto de partida – ou talvez um reflexo. Por isso a brincadeira no título quando da crítica ao filme “O Corpo é Nosso!”, de Theresa Jessouroun, que não foi feita para diminuir essa produção fundamental para os tempos em que vivemos.Talvez há uma demanda perdida por conhecimento que, aqueles que não furam sua bolha, jamais.
Os procedimentos desta produção se assemelham aos programas que preenchiam as manhãs da Rede Globo e concedia certa autonomia intelectual a quem teve que abandonar os estudos pelos imperativos da vida. Quando tratava de alguma tema sócio-político, era comum a utilização de uma trama encenada para mediar e ilustrar o debate. Talvez não seja mera coincidência a Globo News e a Globo Filmes co-produzirem o longa-metragem. “O Corpo é Nosso!” se define como um documentário permeado por uma ficção, mas aqueles momentos se limitem a talking heads que, em sua maioria, não possuem vínculo emocional com tema – e sim puramente informativo.
O roteiro ficcional mostra o jornalista Marcos, vivido por Renato Góes (de “Legalize Já – Amizade Nunca Morre“, de 2018) questionando sua escalação para cobrir uma pauta sobre feminismo. A abordagem nessa fase de “O Corpo é Nosso!” é tão didática que nos permite questionar porque ela existe. O filme começar e encerrar dessa maneira nos leva a crer que há algo além de tornar mais palatável o assunto a ser discutido. É possível que um espectador menos acostumado com os signos cinematográficos adquira uma ambientação só e encare toda a obra cinematográfica como uma ficção.
Depois de um rápido debate sobre lugar de fala, Marcos passa a fazer as entrevistas. Seus momentos com o passar do longa-metragem se transformam em transições, em passagens para a mudança do debate e dos depoimentos que se seguem. A dificuldade de permitir manifestações mais carregadas de representatividade se revelam na figura do patrão de Marcos, interpretado por Oscar Magrini. Quando os depoimentos ganham força, fica cada vez menos impactante a face lúdica do filme. A narração meta diegética deixa uma impressão de leitura de verbete do Wikipédia.
A abordagem da maneira pela qual o corpo feminino foi representado através do século XX e início do XXI tem a companhia de imagens de arquivo preciosas, que já se revela o suficiente contraponto para as entrevistas com antropólogos e historiadores. Talvez criar uma maneira de dinamizar o documentário fosse mais pertinente, como, por exemplo, a obra “Feministas: O Que Elas Estavam Pensando?” (2018) da Netflix fez ao revisitar mulheres que posaram para Cynthia MacAdams nos anos 1970 e 1980.
Mesmo que os já iniciados nas discussões não encontrem material que mergulhe nas questões mais fundamentais, “O Corpo é Nosso!” é excelente para que a pauta do feminismo, principalmente o negro, se apresente de maneira incisiva e respeitosa. Quando deixa de lado a abordagem ficcional e passa a contextualizar historicamente comportamentos das mulheres é que essa produção ganha força. Como a autonomia dos corpos femininos brancos foi atingido pelo imperativo mercadológico, em virtude da entrada das mulheres no mercado de trabalho é deixado bem claro. Esse caminho traçado pelo documentário se serve a uma conclusão que tira o microfone dos antropólogos e historiadores, todos brancos, para finalmente ouvir a voz dos invisibilizados.
A ponta que fica solta é a inicial, que se utiliza do funk para dar início à história. A problematização de manifestações culturais, os simbolismos dos bailes, todo um leque de possibilidades perdem espaço para o olhar estrangeiro contemplativo que de nada ajuda. A prova maior de que filme quer ser produto para as massas, mas fazendo de forma que, infelizmente, não o atinja a curto prazo é o diálogo final melancólico, que dá margem para continuação que seria um verdadeiro Universo Telecurso 2000 Cinematográfico. Ocorre que, mesmo que boa parte do público alvo se frustre pela ausência de novidades, se perguntarem quem deveria assistir a “O Corpo é Nosso!” o mais rápido possível a resposta será: todos.