Curta Paranagua 2024

O Competidor

Ritual dos Sádicos

Por João Lanari Bo

Durante o Festival É Tudo Verdade 2024

O Competidor

O que eles fizeram com a TV? Lá pelo final dos anos de 1990, um produtor com pouco ou nenhum escrúpulo acordou e teve a ideia perversa de convocar um time de aspirantes ao estrelato televisivo no Japão para …enfurnar-se num quarto mínimo, despir-se de toda roupa e… sobreviver. Nu, como veio ao mundo, o eleito (escolhido por sorteio) teria como objetivo inscrever-se pelo Correio em todos os concursos possíveis e imaginários do universo comercial japonês – e não são poucos. “Vida em Prêmios” foi o cínico título escolhido, no início um segmento semanal do popular programa Denpa Shonen: sabemos que os game shows japoneses exploram o desejo por extremos, mas a ideia do produtor Toshio Tsuchiya foi levar o show ao extremo dos extremos, no limite da exaustão, no limite da morte.

O Competidor”, documentário que a britânica Clair Titley completou em 2023, quer recuperar essa história tresloucada, mais uma das loucuras que usualmente se aplicam aos artefatos que vem desse país que é uma verdadeira image factory, como dizia Donald Richie, o decano dos críticos ocidentais que escreveu sobre cinema japonês. O Japão moderno, que começa em meados do século 19, foi obrigado a conciliar o fim da era medieval com a modernização, assimilando rápida e brutalmente novas tecnologias, do cinema a equipamentos de guerra. Desde então o audiovisual sedimentou-se no inconsciente local de modo singular e sem paralelo na civilização terráquea.

Não é surpresa ter sido o conceito de “reality TV” gestado na cabeça de um produtor japonês, justamente quando a internet se espalhava a passos velozes pelo mundo. Registrar e tornar acessível 24/24h a performance agoniada e patética de um sujeito nu recebendo diariamente prêmios bizarros – dado seu status de lutador pela própria sobrevivência – é a materialização do sadismo escópico do produtor, mas também, e sobretudo, da audiência. A vítima, ou o eleito, tinha um rosto longo e desproporcional em relação à média dos japoneses, almejava a carreira de comediante e ganhou logo o apelido de “Nasubi”, ou beringela, no vernáculo português.

A diretora Clair Titley percebeu que poderia adicionar uma segunda camada de voyerismo, a dos espectadores ocidentais que se comprazem em testemunhar as proezas do “outro” japonês. Segundo ela:

Embora eu saiba que o filme documenta o início dos reality shows e esse é um tema central, não pretendi fazer um filme sobre o início dos reality shows. É um filme sobre Nasubi e sua jornada. Espero que as pessoas questionem seus papéis nessa jornada. Todos somos cúmplices, até certo ponto, dessas narrativas.

Mas, será que “O Competidor”, na ânsia de expor seu objeto de investigação, não termina reintroduzindo simplesmente o impulso voyeurístico que pretendia criticar? O produtor Toshio Tsuchiya disse a Nasubi que ele teria de viver dos prêmios dos sorteios de revistas, ou seja, inteiramente pela sorte. Embora Nasubi pudesse tecnicamente sair da sala a qualquer momento, o objetivo era ganhar prêmios no valor total de um milhão de ienes. Truques tecnológicos ocultavam seus órgãos genitais e outros extremos corporais, em um gênero de TV conhecido por seus extremos. Havia câmeras, mas Nasubi não sabia que estava sendo filmado. Foram 15 meses de tortura, até que o eleito (ou a vítima) começasse a perder conexão com a realidade – depressão e até suicídio entraram no cardápio, para excitação da audiência, a essa altura maciça.

Nesse ritual dos sádicos, como diria José Mojica Marins, nosso Zé do Caixão, não há espaço para arrependimentos. Nasubi fala muito, mas tem dificuldades em racionalizar sua experiência. Tsuchiya, sem nenhuma modéstia, atribui-se uma visão de futuro sem rodeios ao lembrar sua concepção do show em 1998 – e o faz sem hesitações, mal sugerindo, se é que pensou nisso, que tenha extrapolado algum limite ético. Haveria alguém envolvido no processo de produção consciente do sofrimento de Nasubi? O desejo do público por extremos – característica do “outro” japonês, consumida em segundo grau pela audiência global um quarto de século depois – é condenável moralmente?

Em um dos depoimentos do documentário alguém sugere que os espectadores jovens realmente se divertiam com as agruras de Nasubi – mas os mais velhos, criados durante as privações da 2ª Guerra Mundial, não tinham a mesma opinião. Exibido como o filme de abertura em São Paulo do Festival É Tudo Verdade 2024, “O Competidor”, o filme de Clair Titley, tem seu maior mérito, mesmo que involuntário, no registro dessa (in)sensibilidade que irrompeu na virada do milênio e parece dominar a cena.

4 Nota do Crítico 5 1

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