O Bom Doutor
Ah, a caridade natalina...
Por Vitor Velloso
“O Bom Doutor”, de Tristan Séguéla, é o resultado de anos de investimentos massivos em filmes natalinos com as comédias francesas pastelonas, uma espécie de enlatado “from France” que chega ao Brasil para ser distribuído nas áreas nobres das respectivas cidades. Mais como um produto programático do mercado europeu, o filme conta as pataquadas de um médico, Serge (Michel Blanc, de “As Testemunhas”), e o entregador de comida Uber Eats Malek (o comediante e Youtuber Hakim Jemili), que acredita ser um empreendedor/empresário, durante a véspera de Natal. A comédia é pouquíssimo criativa, chegando ao clichê máximo do renascimento, moral e literal, culminando como resultado da “caridade”.
Mas é claro, dificilmente poderia surgir algo distinto em um projeto que envolve Séguéla, Blanc e Jemili, com carreiras profundamente duvidosas. Contudo, algumas coisas aqui podem surpreender quem espera o senso comum das comédias industriais francesas, repletas de sexismo, racismo etc. “O Bom Doutor” até faz algum esforço plural nesse sentido, tentando provocar algum tipo de sensibilidade midiática ao finalizar a projeção com uma certa “mea culpa” do gênero. Está certo que é apenas uma jogada marketeira e como tal, não pode ser tratada de maneira menos oportunista. E esse é o adjetivo mais redondo para definir um projeto que procura na multiplicidade de suas histórias prosaicas, algum tipo de escatologia no humor desengonçado. Seja com a necessidade de resolver uma fecaloma ou mesmo com a injeção aplicada de maneira equivocada que paralisa os movimentos inferiores do médico, há alguma investida cômica que pode funcionar ocasionalmente, mas nada suficiente para salvar uma hora e meia de contos natalinos que fazem piada com a precarização dos serviços.
Como os demais longas franceses para o mercado internacional, a lógica é simples, trabalhar em torno de uma certa caricatura da cultura local e trabalhar o campo e o contracampo como uma medida de potencializar os tempos cômicos. Longe de ser uma dinâmica que funcione como os filmes dos irmãos Coen, a prática é direcionada à dilatação dessas durações para gerar um desajuste dramático, que persegue um modelo das relações. É uma reprodução constante de tudo aquilo que a indústria vem fazendo, um mimetismo tacanho que serve para lucrar e receber algumas distribuições de preenchimento de janela. A fácil circulação de obras como essa em território brasileiro encontra ainda outra margem, o “figurino francês” dos cinemas de rua, como os da Zona Sul carioca.
O caráter genérico que as cenas de “O Bom Doutor” é incapaz de superar, é o sintoma de uma produção que vai sendo engolida ano após ano por esse prognóstico diletante de cifras que precisam cruzar o Oceano para manter as coisas funcionando. Tudo aqui possui essa bestialização dos encontros, mantém a perspectiva das relações temporárias, que reconhecem o momento como a prática desse clichê pós-Nouvelle vague. A filosofia do “perene” encontrou o terreno mais fértil para estruturar e relativizar algumas imagens e ideologias, claro, um reflexo da fragilidade europeia diante do rolo compressor internacional imperialista. Não por acaso toda a estrutura narrativa aqui remete aos “clássicos” norte-americanos que trabalham o humor natalino como uma certa redenção moral, entre um embate direto de duas figuras dicotômicas (por vezes uma ideologia propriamente dita) que precisam encontrar uma certa harmonia para manter o “status quo” dessa data. É o caso aqui, onde os dois personagens precisam se entender (por vias tecnológicas) a fim de salvar vidas ou apenas retirar bolo fecal de um homem, para que ele possa se reunir com sua família e comemorar o nascimento de Jesus Cristo, que também recebe sua representação, um bocado forçada, mas está lá.
“O Bom Doutor” chega comemorando o Natal de forma precoce quando as temperaturas brasileiras oscilam e provocam uma certa arritmia térmica, mas deve circular bem nos on demands próximo ao fim do ano, quando o bom e velho Papai Noel chegar às boas novas do ano que se aproxima. É o brasileiro iracundo com a realidade parando para se deliciar com a boa e velha miscelânea from bordeaux.