O Auto da Compadecida 2
Reflexo de si
Por Vitor Velloso
A continuação de um dos filmes brasileiros mais populares de todos os tempos não apenas mata a saudade do fã que queria revisitar seus personagens em outra aventura, como também procura tratar das temáticas do original com um prisma diferente, mais contemporâneo e social. “O Auto da Compadecida 2”, dirigido por Flávia Lacerda e Guel Arraes, retoma essa representação de um Brasil plural, com sua fé aflorada, problemas sociais e políticos, tudo sempre transitando entre a sátira e a caricatura.
Nesse sentido, é interessante a escolha por uma abordagem estética que apela para uma certa artificialidade dos cenários, abraçando o caráter teatral do texto original, da minissérie e do filme. Aqui, toda a estrutura do estúdio é vista, e o cenário se torna ainda mais idílico, realçando o caráter fabular dessa história e desses personagens. Aliás, as adições de novos personagens ajudam o projeto a trabalhar questões políticas, sociais e econômicas de forma mais categórica, seja por meio da representação do coronelismo, das disputas eleitorais ou de como o controle da comunicação influencia diretamente os eleitores. Ou seja, “O Auto da Compadecida 2” faz algum esforço para trazer a discussão concreta de determinadas regiões do país, mesmo em um universo fantasioso, com intervenções frequentes de entidades etc., o que é louvável para rememorar que, apesar de sua comicidade, não há ingenuidade em suas construções sociais. Contudo, é necessário frisar que, embora consiga traçar melhor as relações sociais por meio desse dispositivo político, sobretudo com os personagens Arlindo (Eduardo Sterblitch) e Coronel Ernani (Humberto Martins), parte dessa projeção da realidade brasileira permanece em um campo particularmente superficial e com uma forte moralidade nas críticas que são feitas.
Sem dúvida, João Grilo (Matheus Nachtergaele) e Chicó (Selton Mello) são o centro de “O Auto da Compadecida 2”, como não poderia ser diferente. Aliás, a química dos atores e seus diálogos rápidos marcaram o público brasileiro. Aqui, apesar de a dinâmica entre eles funcionar bem e o roteiro (assinado por Guel Arraes, João e Adriana Falcão) procurar estabelecer seus personagens com uma base quase mitológica, não apenas no universo de Suassuna, mas em toda a reconstrução de Taperoá, que possui ares fabulares, existe uma questão incômoda na relação dos protagonistas com as demais personagens: a maior parte dos novos coadjuvantes não ultrapassa o lugar de mero recurso dramático para movimentar João Grilo e Chicó em sua aventura. Não por acaso, em determinado momento, parte desses personagens é esquecida pelo próprio filme e desaparece. Além disso, o roteiro se dá ao trabalho de explicar uma mudança de ator em determinado personagem da obra, mas não faz questão de fazer o mesmo com outro personagem. Não que uma explicação fosse necessária, mas a falta de simetria gera algum tipo de estranhamento.
Funcionando como uma grande homenagem, ao mesmo tempo que tenta encontrar um novo rosto para chamar de seu, “O Auto da Compadecida 2” realiza tantos tributos ao filme original que se repete em diversas sequências, seja com planos, diálogos ou acontecimentos, tornando-se uma máquina de nostalgia fortemente questionável em alguns momentos e frustrante em outros, já que não é possível ver alguma novidade na articulação de determinadas cenas ou sequências. Por fim, a tônica do sobrevivente e o jogo entre a regionalidade, o estereótipo e a poesia são o grande trunfo de uma obra que não encontra grandes propulsores originais para se distanciar da inevitável comparação com o filme anterior, mas parece se divertir com suas autorreferências e seu universo, não apenas revisitado, mas reconstruído por meio da produção realizada inteiramente em estúdio.
“O Auto da Compadecida 2” pode ser particularmente frustrante para quem cria alguma expectativa, especialmente em comparação com o projeto original. Porém, possui um elenco tão vasto e hábil que consegue manter seu carisma, mesmo que parte desse carisma seja fruto de cacoetes e autorreferências. O caráter poético dos diálogos não deixa a desejar, mesmo que o referencial da peça já não seja a base do texto, e a dinâmica do projeto vai conseguir encantar parte de seu público novamente.