O Assassino
"Esqueça a empatia, não confie em ninguém"
Por Pedro Sales
Festival de Veneza 2023
“Não há maior solidão do que a de um samurai, a menos que seja a do tigre na selva…talvez …” Abertura de “O Samurai” (1967), de Jean Pierre Melville
A frase acima inicia “O Samurai”, filme em que Alain Delon interpreta um assassino solitário e melancólico. Por essa razão, sobretudo a solidão e o ofício dos protagonistas, houve quem comparasse o longa francês a “O Assassino“. Apesar de ser uma clara influência para o diretor David Fincher, que inclusive disse que o filme não existiria sem a obra francesa, há um autorismo palpável na abordagem do cineasta. Ao adentrar a rotina metódica e fria de um assassino de aluguel, Fincher de certa forma também demonstra seu controle e cuidado formal na mise-en-scène. Assim como o personagem principal, ele também tem seus vícios e tiques. Além disso, subverte-se o clássico filme de ação no que tange aos conflitos. O frenesi violento dá vez a elegância soturna de um homem introspectivo, mas ainda sim obstinado.
Michael Fassbender vive um assassino de mil nomes e ao mesmo tempo nenhum, sendo creditado apenas como “O Assassino”. Após falhar em uma missão, o personagem sofre retaliação dos mesmos que o empregaram. Diante das consequências enfrentadas pelo trabalho mal sucedido, ele decide se vingar contra cada um dos responsáveis por isso. A narrativa é, portanto, extremamente simples como se pode ver. Nesse sentido, a decisão narrativa de dividir o filme em capítulos é acertada. O próprio título das cinco partes que o longa possui conseguem resumir muito bem o que virá. Fincher, então, é bastante direto e coeso, cada capítulo dura apenas o suficiente para o assassino aparar as arestas. No geral, mantém-se também certa unidade nos capítulos, por mais que se passem em cidades diferentes, pois o foco narrativo permanece naquele homem que não muda.
Por esse motivo, todos os outros personagens são puramente orbitais. A brasileira Sophie Charlotte aparece discretamente, assim como Charles Parnell. Apenas foge dessa estatística Tilda Swinton que definitivamente rouba a cena em sua curta aparição. Ou seja, o aprofundamento dramático e narrativo está o tempo todo no assassino, em uma abordagem chamada “character driven” – foco no desenvolvimento do personagem. A introdução é extremamente competente para estabelecer essa ideia. Com um distanciamento evidente, o assassino usa um telescópio para observar a futura vítima. O voyeurismo remete até mesmo à “Janela Indiscreta”, de Hitchcock, mas com uma morbidez maior. Nesses momentos, há o uso da narração. O recurso se comporta como um fluxo de consciência que ambienta o espectador à rotina, entrecortado apenas pela playlist obsessiva de The Smiths – que nunca é demais. Então, por mais que o protagonista seja frio e metódico, Fincher estabelece certa cumplicidade com esse homem, pois a câmera está com ele a todo momento e, por extensão, o olhar do espectador sempre o acompanha.
Mesmo com a gravidade e seriedade do protagonista, “O Assassino” não se furta de sequências genuinamente engraçadas. A própria missão fracassada é satírica. O cineasta contrasta todo o método e cuidado com a tragédia em uma cena estilizada e em certo grau irônica ao som de “How Soon Is Now?”. A cena do elevador ou a procura por uma faca na gaveta também evocam o humor pela quebra de expectativa. Outro fator que parece se opor a índole do protagonista é o próprio capital. Em seu texto sobre o filme, o crítico Michel Gutwilen aponta o globalismo na narrativa. Na realidade, esse aspecto é plenamente relacionável com Fincher, que se tornou o principal nome por trás da ascensão de produções próprias da gigante do streaming Netflix, quando foi produtor de “House of Cards”. Aluga-se carros na Hertz, pede-se produtos na Amazon e troca-se de cartões American Express. Portanto, o assassino usa o dinheiro para combater também o dinheiro, ou melhor, a taxa extra que garantia a retaliação em caso de falhas.
A direção de David Fincher, então, mescla esses temas mas sempre em uma curva de evolução do protagonista. No início, a própria mise-en-scène reflete o distanciamento e frieza do assassino, o que é totalmente condizente com o mantra: “Esqueça a empatia. Não confie em ninguém”, repetido a esmo, como quem tenta se convencer de algo. Nesse sentido, as mortes são esvaziadas dramaticamente, a narração existencialista e introspectiva deixa claro, a todo momento, que se trata apenas de trabalho. Da mesma forma, não há choque quando algum inocente cruza o caminho dele e tem um final sangrento. Ou seja, no primeiro momento, a moral inflexível é também impessoal, quase maquiavélica no mote “os fins justificam os meios”. A distância, cênica e dramática, dá vez para uma ira passional. A câmera se aproxima, pois o protagonista também está mais envolvido com sua missão de vingança. Se antes ele estava distante emocionalmente das missões e fisicamente das vítimas, ele passa a correr riscos, enfrentar corpo a corpo, inclusive em uma das melhores cenas do filme, os responsáveis pela retaliação. A montagem é outro recurso de linguagem que representa bem essa mudança, as transições evocam uma temporalidade baseada apenas na conclusão da missão vingativa e, por isso, a já citada divisão em capítulos funciona tão bem.
“O Assassino” é um filme de gênero que prefere a introspecção de um personagem frio, metódico e vingativo às convenções frenéticas da ação. Entretanto, esse fato jamais descaracteriza o filme, pelo contrário, trata-se de uma abordagem mais elegante e cuidadosa do gênero. Mesmo mergulhado na complexidade moral de um personagem plenamente questionável, há cenas de perseguição, de luta, tiroteio, o pacote completo da ação. O que há de bastante interessante nessa abordagem impessoal é como Fincher adequa o filme formalmente ao personagem. Inicialmente com o distanciamento e a câmera com movimentação discreta, para dar vez a uma saga na busca pela vingança, em que o cuidado intrínseco ao personagem lida internamente com a ira, fazendo com que o planejado se torne improviso. Michael Fassbender, então, está em uma excelente atuação, típica do estudo de personagem. Ele sustenta todo o filme nessa dicotomia. Portanto, o assassino de mil nomes é solitário como o de Delon, mas em vez da melancolia inconsolável, vive o conflito entre o cuidado e o desejo de vingança.