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O Amor Dá Trabalho

O Amor Dá TrabalhoO Amor Dá Trabalho

Abençoe os Ignorantes

Por Jorge Cruz

 

 

Por mais que tentem macular o cinema brasileiro com supostas ideologias ou desvios de finalidade, a movimentação da indústria mostra que, apesar das injustificadas ressalvas de boa parte da população, a produção nacional segue um processo de desenvolvimento sustentável. Mais do que qualidade e quantidade, o que se vê no cinema brasileiro é pluralidade: de visões, estilos, orçamentos, nichos, públicos… Colocar a indústria cultural no divã é uma tentação tão colorida e doce quanto aqueles chocolates que uma loja famosa por suas longas (e propositais) filas gosta de espalhar pelas prateleiras para que seja difícil resistir sem comprar. Cá estou eu no objetivo de traçar uma análise sobre “O Amor Dá Trabalho” (2019), quase como quem segura um par de meias enquanto é provocado por sacos de batata frita e balas em formato de dentaduras.

O Amor Dá Trabalho, lançamento da Globo Filmes estrelado por Leandro Hassum, nos apresenta Ancelmo, funcionário público que se esforça para ser o menos prestativo possível em sua repartição. Em um ordinário dia de sua existência, uma estante de prateleira de arquivos cai em sua cabeça e ele canta para subir. Na encruzilhada que definirá se o homem repousará no céu ou no inferno, este é informado de que não há em seu currículo pontuação suficiente para ser arrebatado pelos querubins. Sendo assim, é dada a opção de fazer uma boa ação capaz de render os pontos que lhe faltam. Com isso, o mais novo espírito precisará unir Elizangela, interpretada por Flávia Alessandra (“Doidas e Santas”, 2016) e Paulo Sérgio, vivido por Bruno Garcia (“Uma Loucura de Mulher”, 2016), ex-noivos que terão que se reencontrar e casar nos dez dias seguintes.

Hassum conseguiu na última década atrelar (e ancorar) sua imagem a sucessos de bilheteria como “Até que a Sorte nos Separe” (três longas, de 2012, 2013 e 2015) e “O Candidato Honesto” (duas produções, de 2014 e 2018). Se o Brasil tratasse o cinema tal como os norte americanos, poderíamos entender o ator como um grande nome da comédia dentro de um star system (como já foi Ben Stiller e Adam Sandler), ao lado de Ingrid Guimarães (e seus três filmes da série “De Pernas para o Ar”, de 2010, 2012 e 2019) e Paulo Gustavo, esse último talvez o astro que entregue bem mais do que a expectativa dos produtores, com os recordes obtidos com a franquia “Minha Mãe é uma Peça” (2013, 2016 e outro a ser lançado em 2019). Falar dos sucessos comerciais desta década precisa obrigatoriamente usar Leandro Hassum como exemplo. Dito isto, sem se estender pelos motivos da massa comparecer em seus lançamentos, “O Amor Dá Trabalho” é uma tremenda bola fora da Globo Filmes.

Utilizar base de roteiro clichê (ao estilo de “E Se Fosse Verdade…” de 2005) sequer é um problema perto das soluções propostas pelo texto. Inclusive, a ideia de trazer uma trama de espírito é boa para que Hassum possa desenvolver seus trejeitos cômicos característicos sem precisar interagir com os membros do elenco que lhe servem de escada – já que eles não veem o parceiro de cena. Esta forma de reagir e debochar do que acontece é a marca do ator desde sempre. Somando a possibilidade dele alterar o destino dos outros personagens, parece que o roteiro de Ale McHaddo (que também dirige) e Felipe Mazzoni, dentro do leque de premissas preguiçosas do gênero, encontrou aquela ideal para o âncora do projeto brilhar.

Ocorre que “O Amor Dá Trabalho” trafega na estrada sinuosa da piada ofensiva, quase sempre no limite de velocidade. Da forma mais elementar, utiliza estereótipos superados. Paulo Sérgio, no início da história, está prestes a pedir a namorada Fernanda, personagem de Monique Alfradique (“Chorar de Rir”, 2019) em casamento. Ela, filha de um multimilionário empresário do ramo da agropecuária, se revela uma patricinha burra. Não precisamos nem dizer qual a cor do cabelo da moça – e como esse apreço pela aparência será usado como desculpas para piadas.

Por duas vezes o limite do ofensivo parece ser ultrapassado. Na primeira delas, quando a linguagem do filme ainda não deixava clara sua proposta de fazer piada com religiões de maneira democrática, uma cena brinca com o acarajé vegano mostrando uma senhora vestida de baiana vendendo a iguaria. Aqui há uma questão problematizante com o uso da palavra acarajé, um debate que quem se interessar encontra facilmente na internet. O problema é que esse momento do filme não atrairia a polêmica se a personagem não se revelasse um filha de Iansã (que, por sinal está no filme) e não apenas uma mulher vestida como vendedora de acarajé. Pelo menos não havia abóbora na receita, o que seria ainda mais ofensivo. Explica-se.

O acarajé é a comida ritual de Iansã, sendo incompatível com seu culto a abóbora. Isto porque a orixá guerreira jurou nunca mais comer esse fruto quando conseguiu escapar da por inimigos de Oya se escondendo no meio de uma plantação de abóbora. Um embasamento que extrapola o conceito de apropriação cultural ao denominar bolinhos feitos a partir de receitas diferentes da tradicional de acarajé, transformando-se em algo ofensivo ao devoto.

A outra acontece em um momento específico do conflito veganismo x agronegócio usado de mote para desenvolvimento da trama. Elizângela, na ideia de antagonista de Fernanda, é vegana e dona de um food truck de comida sem origem animal. Campo aberto para diversas piadas sobre o estranhamento causado por quem não se alimenta de proteínas não-vegetais. Faz parte, o humor precisa subverter e desconstruir para que o provocado ache graça. Todavia, a constrangedora cena de Bruno Garcia reanimando um periquito com respiração boca-a-boca para agradar a vegana é um exemplo de como não fazer comédia de tipo, apenas desrespeito gratuito. Uma gag que pouco acrescenta, já que uma piada semelhante com biscoitos da sorte já havia sido feita, que culminando em trocadilhos infames.

Aliás, trocadilhos infames é um expediente excessivamente utilizado em “O Amor Dá Trabalho”. Talvez para tangenciar o risco de ofender alguém ou quem sabe uma herança dos trabalhos anteriores dos roteiristas, vindo do mundo das animações infantis. A responsabilidade do emissor já não é uma discussão tão contemporânea assim e testes de plateia conseguem identificar com facilidade o quão equivocado e anacrônico algumas abordagens do longa se revelam, pecando na inteligência.

Surpreende um pouco que a Globo Filmes, braço de uma empresa que no ramo do entretenimento tem se preocupado com essas questões, leve adiante algo assim. Mas precisamos entender que o mundo mudou e está cada vez mais policiado nas ideias para com o outro. Há quem diga que esta é uma censura invertida de um conservadorismo hipócrita. Se sim ou não, ainda não sabemos. O humor praticado atualmente tem sido exitoso ao afastar esquetes baseadas em estereótipos e manifestações ofensivas.

Dentro do próprio filme há um exemplo bem sucedido, em duas cenas onde uma espécie de Conselho de Deuses reúne bons comediantes e algumas personalidades para brincar com todas as religiões. Isso é feito utilizando seus símbolos e narrativas para se adequar à história, trazendo um pouco de frescor ao filme. Algo que o Porta dos Fundos faz com maestria em algumas oportunidades. Há até uma referência a “Doze Homens e uma Sentença” (1957, Sidney Lumet) ótima, contrariando todas as besteiras anteriores como um Bruce Lee e Pai Mei bem mal encaixados na famigerada cena do biscoito da sorte.

Não fica claro porque há boas passagens como essa contrastando com momentos desabonadores como os já citados. A forma de esquetes, aliada à montagem televisiva típica de filmes da Globo, deixa a dúvida da cronologia de tratamentos do roteiro. O trabalho do experiente editor Marcelo Moraes é um dos fatores que potencializa o provável sucesso de “O Amor Dá Trabalho”, que também agrada no uso dos efeitos visuais. Porém, vale a reflexão de que talvez uma piada pensada cinco anos atrás precise ser revisitada.

Por outro lado, toda uma discussão acerca da ética do trabalho, que parecia nortear o plot twist que fingimos surpresa, fica travada pela produção de massa de piadas adolescentes que parece não ter fim. Se há uma busca por suprir a necessidade de um mercado politicamente incorreto que a TV entende não comportar, o filme está de parabéns. Ele divertirá seu público-alvo com a qualidade de produção de sempre e não surpreenderá quem busca a problematização e sabe que a batalha é longa. Porém, se não há essa busca, caso o longa entenda que é possível se vender como desconstruído e moderno, é um baita tiro no pé de seus realizadores.

1 Nota do Crítico 5 1

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