Procedimentos Intrusivos em Docudrama
Por Michel Araújo
Sendo o cinema documentário muitas vezes entendido como “o cinema da verdade” – muito embora ele dependa de procedimentos discursivos e criativos tanto quanto o cinema ficcional -, torna-se muito sensível a maneira como o autor irá agenciar os fragmentos de filmagem. Como foi postulado por Eduardo Coutinho, grande documentarista brasileiro, o cinema documentário se trata menos da “filmagem da verdade” do que, efetivamente, sobre “verdade da filmagem”.
Essa “verdade da filmagem” implica honestidade com o público acerca da materialidade da produção, do agenciamento das imagens e do papel socialmente ativo da equipe de filmagem. Há uma crueza na forma de ver o filme, admitindo-o como produto de uma intenção artística, estética e política, como um procedimento realizado por autores, e não como um discurso de imagens flutuantes que falam por si só e representam uma afirmação a permanecer inconteste.
Partindo, pois, dessa acepção materialista – que pode muito bem não se encerrar no cinema documentário, mas se estender para o cinema como um todo -, uma pós-produção descomedida, com montagem por mais demais célere, trilha sonora intrusiva e uma dramatização ficcional contrapontual caricata seriam procedimentos os quais sufocam a potência dos fatos de falarem por si, e não de apenas serem subsumidos por uma intencionalidade possessividade.
Em “O Amigo do Rei” (2019), de André D’Elia, todos os procedimentos acima mencionados se fazem infelizmente presentes. O docudrama trata do trágico evento que decorreu em Mariana, Minas Gerais, no ano de 2015, quando rompeu-se a barragem de rejeitos de mineração denominada “Fundão”, controlada pela Samarco Mineração S.A. O crime ambiental decorreu de uma inescrupulosa negligência da empresa, resultando na morte confirmada de 18 pessoas, e desaparecimento indeterminado de uma.
Para além das mortes, os danos estruturais foram devastadores: houve a total destruição dos sub-municípios de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo; impactos no abastecimento de água em cidades tanto de Minas Gerais como de Espírito Santo; danos culturais a monumentos históricos do período colonial; danos à fauna e à flora na área da bacia hidrográfica com possível extinção de espécies endêmicas; prejuízos à atividade pesqueira e turismo nas localidades que foram atingidas.
Para além da tragédia em si, a empresa manteve sua atitude negligente diante da indenização e auxílio das populações afetadas, bem como pagamento das multas por improbidade administrativa ambiental. Em suma, uma catástrofe escandalosa e enfurecedora em todas as suas instâncias, a qual muito boa poderia representar a si mesma num filme, sem toda a pompa e dramatização excessivas empregadas pelo longa-metragem em questão.
“O Amigo do Rei” mescla os relatos de ex-moradores afetados, análises técnicas de acadêmicos da área de engenharia ambiental, bem como membros de ONGs ambientalistas, depoimentos de trabalhadores envolvidos na situação, e cenas ficcionais de um personagem construído nos moldes estereotípicos de um político corrupto. Num nível informativo, os depoimentos e análises técnicas apresentam o conteúdo necessário para que se entenda as razões para o rompimento da barragem, por que houve uma negligência da empresa e qual negligência foi essa, os impactos ambientais e sociais, bem como o papel isento do Estado na fiscalização e punição das práticas da Samarco.
O agenciamento das imagens porém, é feito de maneira forçada e mesmo ingênua, com apelo excessivo à montagem, que possui a menor necessidade estética ou técnica. As imagens dos entrevistados são picotadas quase na lógica dos jump-cuts de um vlog. Uma ex-morador entrevistada é vista usando uma camiseta com foto de uma criança, e o título acima “para sempre emanuele”, mas a inscrição de baixo sequer pode ser lida decentemente, dada a rapidez desnecessária da montagem. Durantes as falas a trilha sonora melancólica não cessa, e parece permear o filme por inteiro – salvo momentos muito breves -, como se objetivasse guiar o espectador pela mão e reforçar de maneira pleonástica que isto tudo que lhe é contado é triste, muito triste.
Para além da maneira como a seção documental do filme é forçadamente administrada, a seção ficcional atinge níveis de desconforto tremendo. Os diálogos são rasos e se mostram claramente como a ilustração de uma ideia vaga da corrupção na política brasileira. A atuação é fraca, e a encenação como um todo parece oriunda de uma telenovela contemporânea.
A cena mais absolutamente desnecessária definitivamente de “O Amigo do Rei” é do sexo oral que um político recebe de sua secretaria enquanto seu colega negocia esquemas ao telefone. É vergonhosa a sexualização aqui empregada, com a câmera enquadrando de forma acentuada o traseiro da personagem, corroborando o fetiche cultural da figura da secretaria e não nada ao drama ou à crítica social do filme.
O corte de “O Amigo do Rei” excede 140 minutos, dos quais cerca de 40 são essenciais para entender a situação e as críticas a serem feitas à Samarco e à atuação do Estado. Todo o apelo, a pompa, e o excessos do filme – tanto da estética quanto da própria duração – gritam uma intrusão descomedida. Tomando tantas liberdades em cima dos fatos, numa compulsão maquiladora, foi sufocada a liberdade sensível na relação do espectador com o filme.