Nós Passarinhos
Os tempos em suas subjetividades
Por Vitor Velloso
Durante a Mostra CineBH 2021
“Nós Passarinhos” de Antonio Fargoni é uma obra particularmente sintomática do cinema brasileiro contemporâneo. Dentro de uma série de méritos em sua história, há uma questionável narrativa que retorna ao ponto da passividade objetiva, tão comum na representação de um certo “naturalismo” que tomou conta das obras brasileiras. E é curioso, talvez equivocado, categorizar desta forma, pois existe um rigor formal na obra que realmente capta os espaços como confinamentos da encenação, até negação. E desse tom orgânico da realidade, resta uma saturação do tempo que poderia ser definida como uma deformação do realismo, ou “realismo à paisana”.
A proposta é verdadeiramente interessante, conseguindo construir o isolamento da pandemia com dispositivos que apresentam um universo que perde parte de seu sentido na falta de uma encenação dramática. Dois momentos são mais emblemáticos dessa ideia: o bolo de aniversário compartilhado com as vozes virtuais e a trama que mostra Antônio, ou Juninho, querendo fazer seu filme, enquanto o espectador só pode assistir à cidade ao seu redor. E nesse sentido, a obra é realmente eficaz em uma percepção do vazio, na tomada dos espaços, mas longe de ser inconsciente dessas ausências. Porém, quanto mais o longa progride, mais fica claro que os recursos não se sustentam na unidade e faz com que “Nós Passarinhos” retorne a esse ponto do cinema brasileiro contemporâneo, que entende “o perene”, como uma fonte de debate do mundo urbano. O problema é que essa assimilação destitui parte da materialidade de suas temáticas, recorrendo à exposições que encerram em si um possível debate. Assim, resta a divagação em torno das imagens e de academicismos outros.
Quanto mais a cinematografia nacional se mantém atrelada ao recorte que não se expande, mais se distancia das resoluções internas de seus próprios questionamentos. Se em um momento o movimento era do particular ao todo, hoje é do particular ao extremo subjetivo, o que direciona nossa produção às bases europeias e observacionais. Um certo resquício do entrave político na transição das relações socioeconômicas das últimas duas décadas, formalizado na intencionalidade da denúncia e da interiorização de questionamentos sociais. É o problema da desarticulação do todo como fim. Os vácuos ganham formato e a inocuidade parece discursiva.
As concepções de Antonio Fargoni são interessantes, mas pouco sólidas. Diferentemente de “Arábia”, de João Dumans e Affonso Uchôa, por exemplo, a passividade surge como um palco da história, que ainda patina em uma análise mais concreta da coisa, mas sugere um efeito menos corriqueiro das ações. O maior problema de “Nós Passarinhos” é acreditar que essa falta de uma encenação direta com o rigor desses espaços será o suficiente para sustentar o longa, quando a coisa até inicia interessante mas cai em um limbo formal realmente cansativo, pois suas repetições constantes surgem da falta de repertório no uso dos dispositivos, que tornam-se cíclicos. E esse cotidiano, apesar de expressivo, é estagnado pela sensação da imutabilidade dessa realidade, uma chaga fatalista que não pode ser seccionada de um certo academicismo. É como uma ideia consensual que permanece inerte justamente por não levar aos respectivos limites cada um dos dispositivos que ganham corpo aqui.
A Mostra Contemporânea Brasil apresenta mais um projeto idealizado pelo Cinema Instantâneo, que não consegue um efeito distante das produções, mas procura ideias para trabalhar. Como já disse um marginal: Sem chute não há gol. Por essa razão, o trabalho pode ser visto como ponto de discussão, mas com a compreensão de uma normalidade diante do cinema brasileiro, onde algumas modas se assemelham mais às estruturas que às matérias. Há uma certa histeria da desconstrução da encenação, um negócio que tá querendo provocar e acaba relativizando a imagem, a realidade e quem sabe, “o perene como resposta à” alguma coisa. “Nós Passarinhos” realmente investe em algo particularmente denso e propõe sair de um engessamento formal, mas não consegue escapar de certas armadilhas.