No Mar e na Guerra
A Erva do Diabo
Por João Lanari Bo
Telluride Film Festival 2024
O documentário “No Mar e na Guerra”, finalizado em 2024, é (quase) um projeto de divulgação sobre terapias não-convencionais para veteranos de guerra nos EUA. A partir de mergulhos íntimos nas vidas de veteranos SEAL – ou seja, membros das forças de operações especiais da Marinha – acompanhamos a descoberta e a posterior utilização de uma terapia baseada no uso de drogas psicodélicas como última opção para combater o incontornável TEPT, Transtorno de Estresse Pós-Traumático. Debaixo dessa sigla estão lesões cerebrais traumáticas, sequelas físicas e depressão grave, além de tendências ao suicídio.
Combinando depoimentos íntimos de ex-combatentes – são três os principais a revelar tormentos e angústias, mais três com tempo menor na tela – com entrevistas de duas esposas e um filho, desenha-se um quadro assustador. Os três – Marcus Capone, Matthew Roberts e D.J. Shipley – abrem sem rodeios a situação psicológica desesperadora que se viram quando voltaram ao país natal, depois de anos servindo em uma unidade de alto desempenho e risco. Todos na casa dos 40 anos, com vigor atlético aparente como se fossem jogadores da NFL, conforme a descrição que um deles faz. As entrevistas que concedem, seja para os realizadores do documentário, seja para terapeutas e médicos, falando direto para a câmera – vão além do tom confessional, são uma exposição nua e crua de vulnerabilidades e fracassos, no limite do constrangimento.
Sim, pois esses militares foram responsáveis por missões espetaculares, que implicaram em preparo absurdamente rigoroso – uma medida para essa performance corporal é a torrente de filmes de ação norte-americanos que infestam os meios audiovisuais, onde tropas de elite executam tarefas impossíveis, caçando e liquidando inimigos, em geral terroristas. No caso dos SEALs enfocados em “No Mar e na Guerra”, o cenário foram as guerras do Iraque e Afeganistão, na primeira década do milênio. O documentário funciona, nesse sentido, como um avesso da violência tóxica que a ficção se encarrega de disseminar.
Marcus, que fala de forma amena, admite que estava tomando 60 pílulas por dia, de analgésicos a antidepressivos. Sua mulher, Amber, observa que ele se tornou “um monstro” depois de retornar de várias missões, que alcançavam 200 a 300 dias por ano. A situação mudou quando Marcus aceitou experimentar o tratamento alternativo, com o uso de ibogaína e veneno de sapo – este último conhecido como 5-MeO-DMT – ingeridos no México. A ibogaína é o princípio ativo extraído da casca da raiz da planta africana Tabernanthe iboga. O 5-MeO-DMT é uma secreção leitosa extraída das glândulas do sapo Incilius alvarius, nativo do noroeste do México e sudoeste dos EUA. Ambas as drogas são proibidas nos EUA pelo risco à saúde, principalmente arritmias cardíacas, e são utilizadas em rituais xamânicos pelos povos indígenas tradicionais.
É nesse momento que “No Mar e na Guerra” vira a chave, com a possibilidade de efeito terapêutico advinda do tratamento. Em um país que se arvora de xerife do mundo e não hesita em iniciar e participar ativamente de guerras, como são os Estados Unidos, a questão da saúde mental dos veteranos tem, naturalmente, forte impacto na política e na opinião pública. O uso de substâncias alucinógenas, por um lado, pode provocar eventuais reações críticas, em particular dos conservadores. Por outro, os números são duros e insofismáveis: a taxa de suicídio entre veteranos é 57% maior do que a da população em geral – seriam 20 veteranos que se matam por dia. Nos depoimentos no documentário, todos assumem pensar em suicídio, várias vezes por dia, em casa ou qualquer outro lugar.
Marcus e Amber fundaram uma ONG, Veterans Exploring Treatment Solutions – no site da organização consta evento programado para o próximo dia 15 de novembro intitulado Fourth Annual Gala to END Veteran Suicide. Marcus convenceu Matthew e D.J. a viajar ao México para fazer o tratamento, minuciosamente acompanhados pela equipe de documentaristas. A experiência que vivenciaram é ilustrada por animações, apresentando imagens dos personagens girando no espaço, cercados pelas memórias que invadem seus sentidos. São vivências infantis e dolorosas, anteriores ao trauma da guerra – uma descida ao inconsciente, com efeito catártico e restaurador.
Claro, o documentário não aprofunda os processos da “cura” – nem teria tempo para isso. Tampouco sequer menciona os traumas que as populações afegãs e iraquiana sofreram com as guerras, muito menos as centenas de milhares de mortos.
O livro “Erva do Diabo”, bestseller nos anos de 1960, traz os ensinamentos que o autor, Carlos Castañeda, recebeu do índio yaqui Don Juan, na fronteira dos Estados Unidos com o México. Fumar a erva-do-diabo, um ritual xamânico, era o passaporte para o conhecimento interior. Segundo Don Juan:
Um homem vai em busca do conhecimento como vai para a guerra: bem acordado, com medo, com respeito e com absoluta confiança.


