Não Se Preocupe, Querida
Em busca de uma identidade
Por Ciro Araujo
Festival de Veneza 2022
É inegável que daqui para frente o olhar cinematográfico já encravou como possível através da ótima feminina: o female gaze, em sua terminologia original é agora ordem e encrava diante da base calcada do cinema “desenvolvido”. Óbvio que as aspas caracterizam tamanha ironia, mas a palavra engloba de vez esse mercado globalizado envolvido em raízes anglófonas. No contexto da fabricação de novíssimos cineastas, a diretora Olivia Wilde chega com seu segundo filme, “Não Se Preocupe, Querida”. Muito sobre esse olhar ameaçado, mas que percorre um longo caminho de originalidade e efetividade através da tela.
Existem três vertentes possíveis ao observar o novo longa estrelado por Florence Pugh e Harry Styles: a comparativa, que por mais canalha que seja e por mais que se aproxime do estereótipo clássico crítico, é necessário: o filme é uma repetição temática clara. É horrível realizar uma afirmação assim, graças à sua acidez banal, contudo Wilde realiza o que parece apenas a revisita cuja alma foi sugada. “Mulheres Perfeitas”, obra que rendeu duas adaptações sobre, compreendeu a hipocrisia macabra da era nuclear norte-americana. Ora, se não suficiente, talvez um mais recente, em “Swallow”, um filme sobre a apologia do controle corporal e aproximação da vorarefilia – parafilia da atração em comer ou ter partes, literalmente, comidas. Essas comparações acabam entregando a fragilidade em que “Não Se Preocupe, Querida” se encontra: as temáticas desenvolvidas não são capazes de entregar nada além de produções de cenas bizarras que pouco refletem o estado possível da obra. Assim, são filmagens que apuram o prazer da estética. Estilo sob substância? Mas quando, se as imagens são meros vislumbres que corromperam a linguagem? Um terror que tem medo de si, corre de sua capacidade para montar imagens perturbadoras do horror quando um ponto de vista existe: o “POV” feminino, ou como chamado anteriormente, o female gaze. Pois então o filme de Olivia Wilde prova-se impossível de ser comparado.
A segunda vertente cria-se através do poder comunicacional de marketing e o que gira entorno dela. Muito comentou-se sobre as polêmicas atravessadas durante a produção do longa-metragem. Não é à toa: houve intrigas incluindo o ator Shia LaBeouf – que teria brigado com Florence Pugh -, substituído por Harry Styles. O cantor britânico também se envolveu em um escândalo com a diretora, em uma suposta traição. Ela o escalou, ambos foram fotografados juntos. Houve claro o escândalo de cusparada – se é que aconteceu algo. A importância de tal contexto para uma crítica é clara: em que nível essas relações de poder afetam uma obra? Styles, que recentemente entrou para a carreira artística de vez, parece um ator totalmente engessado, alheio à uma Pugh paranoica, porém inexpressiva. A expressividade também se correlaciona com o primeiro ponto previamente explicado: o cinema de horror, evoluiu para essa ideia de etéreo, onde o bizarro é produzido na falta de expressão, na imagem chapada. O apelo é tanto, que prova o quão objetivamente esse desenvolvimento infernal do filme parece apenas tê-lo transformado em produto midiático para manchetes e virais das redes sociais. Se há algo além dessa monstruosidade de relações públicas, fica exposta sua vulnerabilidade.
E em terceira vertente, sua análise baseada na individualidade. Olivia Wilde, pós-“Booksmart” procura se firmar como uma cineasta dentro dessas opções contemporâneas da grande indústria, que cada vez mais procura, de forma justa e óbvia, mais mulheres. Todas essas assimilações nos levam a procurar entender em que ponto seu novo filme está. Claramente, em um processo ainda de amadurecimento, sejam pelos diálogos que se esforçam no macabro, ou escavando alguma ideia da psiquê humana. Ambas, parecem não possuir consistência: como avisado, as imagens produzidas são meramente chapadas, sem profundidade. Talvez “Não Se Preocupe, Querida” ainda possa ser capaz de construir um imaginário opressivo, especialmente quando acredita na ideia de corpos femininos e prisão sufocante; entretanto, qualquer mero potencial cai em terra seja por sua originalidade ou potencial da cineasta. Wilde ainda precisa percorrer bastante se quiser sobressair nesse campo tão disputado que é o cinema norte-americano. Não precisa ser tão original, mas ao menos precisa ser eficaz para se atentar ao padrão. Divergir desse caminho é possível, mas não parece ser potente e nem interessante caso o a referência de qualidade seja essa.
A obra muito provavelmente irá caminhar em seu circuito padrão, enquanto cai nessa lista paralelas de longas a serem vistos para compreender o cinema “independente” do ano. Se é que uma produção dessa magnitude seja de fato independente. Tal qual o filme, tudo é muito nebuloso, sem a definição entre campo de possibilidades, campo de ideias. Quiçá haja espaço para alguém novo representar o gaze feminino e entregar novidades. Quiçá.