Muribeca
Os escombros da memória
Por Vitor Velloso
Durante o CineOP 2021
Mais um documentário presente nos longas contemporâneos na 16ª CineOP, “Muribeca” de Alcione Ferreira e Camilo Soares, persegue uma das piores consequências da dependência brasileira e de como o avanço neoliberal incentivou as instituições públicas na facilitação do capital privado para fomentar seus investimentos criminosos. Aqui, o problema é parecido com diversas regiões do país, a expulsão de diversos moradores de Muribeca (em Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco), com uma indenização fajuta (se tanto) e um projeto fracassado que a burguesia dependente brasileira abandonou diante das crises interna(cionai)s.
Porém, “Muribeca” está mais interessado nos afetos, memórias e pessoas que ali permanecem, que propriamente na situação política e econômica que desencadeou a situação. Não se trata exatamente de uma leitura anti-materialista, pois como uma fala inicial introduz a questão do filme: “Onde você tinha uma mistura de realidade e fantasia. O real e a fantasia não se separaram nem no final da história do bairro”. Ou seja, o sentimento de desencanto com a realidade é parte fundamental na obra e trata diretamente de como essa memória foi abandonada por uma política de desmonte do Brasil, a fim de favorecer as classes dominantes. A “cidade fantasma” é uma síntese do liberalismo nacional, que conta com esse curvamento virulento das instituições públicas com o interesse do grande capital. Esse campo místico permanece como uma memória que assombra os que viveram durante o período que Muribeca existiu em sua plenitude. Tal como “Kunhangue Arandu: a sabedoria das mulheres” expõe que os indígenas que nasceram após o crime inconstitucional, não irão conseguir ver o que a região foi um dia.
E o documentário possui três frentes de atuação na construção dessa lembrança: os habitantes que ali moravam ou permanecem, filmagens contemporâneas do local e materiais de arquivo de quando as coisas estavam funcionando. A primeira é utilizada de forma massiva, através de depoimentos dos moradores que relatam que as pessoas que foram despejadas dali, sentem falta do local e seguem tentando se aproximar do sentimento de outrora. As que ali ficaram, seguem lutando por seus direitos e dignidades. A segunda projeta como a cidade se tornou uma paisagem de abandono, mostrando os animais dominando a tela e caminhando sem direção pelas ruas. A ausência de pessoas é notável. E a terceira, costura essas ideias para demonstrar ao espectador o que estava em jogo e o que se perdeu. Cadenciar esses três pilares não é uma tarefa fácil, mas a obra é versátil ao costurar isso e mantém a estrutura sob controle.
O material de arquivo consegue dar uma dinâmica ímpar em “Muribeca”, pois não se atém apenas ao registro pessoal (entre ritos e festas), percorre também a comunicação, TV e rádio faziam parte da comunidade. Entrevistas informais sobre uma inundação e cenas belíssimas de uma festa na rua, são exemplos de recortes. A obra de Alcione e Camilo possui algumas digressões performáticas que tentam representar parte da sensação deixada. O rito de matriz africana é particularmente interessante. Já a performance com direito à retirada de maquiagem, acaba sendo uma exposição mais corriqueira e programática, com pouca força durante a projeção. Mas uma coisa é clara, a arte é uma constante que surge da materialidade. Os quadrinhos e a música aparecem como uma forma de denúncia, uma luta constante que o povo subdesenvolvido deve manter a todo custo contra essas instituições que visam seu extermínio.
Por essa razão, alguns exercícios formais se tornam mais explícitos, explicando a grande quantidade de planos contemporâneos, onde a paisagem é o abandono e os lugares são fantasmagóricos. Contudo, é raro estarmos mirando as ruínas sem uma intervenção humana, ainda que pela voz em off, e isso é um compromisso ético do filme, bastante louvável. Tal como Herzog em “Encontros no Fim do Mundo” que atravessa o planeta para escutar as pessoas que ali se encontram, “Muribeca” quer encontrar as memórias de uma cidade invisível, presente apenas nas lembranças e nos registros que já parecem delírios tropicais.