Munique: No Limite da Guerra
"I believe it is peace in our time"
Por João Lanari Bo
Festival de Londres BFI 2021
“Munique: No Limite da Guerra”, dirigido por Christian Schwochow e lançado em 2021, revisita a Segunda Guerra Mundial em um de seus momentos mais dramáticos, embora sem derramar uma gota de sangue: o momento em que Adolf Hitler, no alto de sua arrogância racista e expansionista, anunciou ao mundo ostensivamente seu projeto de tomar a Checoslováquia. Corria o mês de setembro de 1938, ano de hiper polarização política, talvez mais crispada ainda da que ocorre nos nossos dias e que tantas incertezas provoca. Seguiu-se uma pantomima diplomática em que o líder nazista reuniu um amigo, Benito Mussolini, e dois desafetos potenciais: Édouard Daladier e Neville Chamberlain, respectivamente Primeiros-Ministros da França e da Inglaterra. Em uma hora e meia foi negociado um acordo, conhecido como Acordo de Munique, assinado no dia 30 de setembro, mas datado do dia 29. O acordo dava à Alemanha os Sudetos (Sudetenland), a parte ocidental da Checoslováquia, sob a alegação de que ali residiam 3 milhões de alemães. Começando em 10 de outubro, os Sudetos passariam para o controle efetivo alemão, desde que Hitler prometesse que esta seria a última reivindicação territorial de seu país. Do ponto de vista ideológico, o substrato que movia os nazistas era a teoria do espaço vital: a raça alemã estava comprimida em seu território, precisava do espaço vital para florescer. Chamberlain ainda arrancou de Hitler uma Declaração Conjunta de Paz entre Reino Unido e Alemanha, com promessas mútuas de que não haveria guerra: em sua chegada ao aeroporto de Heston (Londres) no dia 30, ele sacudiu a Declaração para a pequena, porém vibrante audiência que o esperava, afirmando, entre o eufórico e o ingênuo: Acredito que ela é a paz em nosso tempo! Menos de um ano depois, a Alemanha invadiu a Polônia e o castelo de cartas desmoronou.
Uma das características de “Munique: No Limite da Guerra” é introduzir, no fluxo da narrativa, imagens fac-símiles de eventos históricos. D.W. Griffith gostava do recurso: embora apelando um pouco para a imaginação, inspirava-se em referências pictóricas e filmava planos fixos reproduzindo fielmente instantes capitais, como Lincoln assinando a abolição da escravatura. Com isso inventou um construto ideológico de longa vida no cinema. A imagem de Chamberlain chegando em Londres foi reproduzida à exaustão nos cinejornais da época, consumidos avidamente pelas ansiosas audiências em todos os quadrantes do globo – afinal, era uma paz que se anunciava, em meio ao temor generalizado de uma nova guerra avassaladora. Hitler, o ambicioso e imprevisível autocrata, parecia, mesmo que brevemente, controlado. O sorriso quase bonachão de Chamberlain reconfortou milhões: e a interpretação magistral de Jeremy Irons consegue, em alguma medida, construir uma interioridade psicológica afim com esse personagem que a História, com H maiúsculo, relegou para escanteio como fraco e desprovido de qualquer senso de realidade. A imagem fac-símile da chegada no filme é superficialmente idêntica ao fato histórico: o espectador contemporâneo, além do conhecimento da tragédia que ocorreu na sequência dos fatos, conhece também o enredo ficcional por trás do evento, o que contribui para a sua intensidade.
Tudo começou com três colegas de faculdade na Universidade de Oxford em 1932, dois homens, um inglês (Hugh Legat) e um alemão (Paul von Hartmann), acompanhados de uma alemã (Lenya, judia) – que vão se cruzar novamente no fatídico ano de 1938, em Munique. Adaptada do best-seller de Robert Harris, publicado em 2018, a narrativa articula o reencontro de Legat e Paul, agora ambos jovens funcionários com acesso direto a Chamberlain e Hitler. Paul, munido de uma ousadia quixotesca, quer encontrar-se com Chamberlain, com a ajuda do amigo, para dissuadi-lo de assinar o Acordo – já que Hitler, enfim, mentia. No saldo final de “Munique: No Limite da Guerra”, Neville Chamberlain recupera um pouco seu papel histórico – alguns historiadores consideram que os meses que ganhou com a negociação foram vitais para o esforço de rearmamento inglês. Chamberlain logrou altos índices de popularidade nas semanas que se seguiram ao Acordo, mas acabou tendo de renunciar dado o avanço nazista e a indiferença de Hitler em relação a qualquer compromisso. Churchill o sucedeu e foi fundamental para a resistência inglesa na guerra, apesar de denegrir impiedosamente o antecessor.
O que ocorre atualmente entre a Rússia e a Ucrânia, guardadas as devidas proporções, lembra em várias medidas o construto ideológico dos anos de 1930. Qualquer semelhança, entretanto, é mera coincidência.