Mulher Oceano
As cores e a personalidade
Por Vitor Velloso
Durante a Mostra de São Paulo 2020
A estréia de Djin Sganzerla na direção, com “Mulher Oceano”, é um dos destaques da 44ª Mostra de São Paulo. O filme é um retrato narrativo de dualidades e jogos cambiais da forma e do drama.
Existe uma unidade presente em sua totalidade, uma espécie de comunhão de duas frentes distintas da mesma história, onde as relações são dadas em sintonia lírica de movimentos particulares. E a tônica não se distancia muito de um processo realmente privado, onde a verve da burguesia se exalta com as transas culturais e materiais de universos distintos. É uma apreensão bastante singular que Djin realiza, ainda que com pequenas características marginais. A construção é dada como uma ordem pragmática de mise-en-scène, um caos ordenado, uma subjetividade reduzida à objetiva cinematográfica, um transe de idas e vindas, de uma maré violenta ao suplício do silêncio. Mas assim como a escrita anterior, o filme acredita em uma verve muito solene, zonasulesca, como quem faz reza missa em consonância com a complacência imaterial do discurso na Urca.
É uma constante de determinadas produções cariocas, uma manutenção rígida de um discurso já formalizado, institucionalizado pela burguesia fluminense, que é transmitido como uma abertura de consciência para o exterior, o perene, o prosaico, o interno, o divagante etc. Alguns dos devaneios resultam em cenas pouco eficientes, de ritmo lento, onde o diálogo vira muleta da percepção dessa classe dominante. É uma imaterialidade que ganha corpo em delírio com esse tom etéreo. Uma relação muito distante da concepção cultural entre duas realidades. Não à toa, existe uma assimilação de narrativas e abordagens que sobrepõe um “embate”, ou seja, é uma simbiose oriental e ocidental, onde o eixo dramático é contornado como quem se transforma, como o projeto de um dos personagens.
Mas “Mulher Oceano” acaba sendo um projeto que é afetado por esse espírito de deslocamento, onde a Zona Sul se faz em consonância com essa libertinagem não convencional. É uma proposta onde o espectador se vê como um constante colaborador das reverberações dramáticas da protagonista, isso porque parte dessas mutações e ampliações se dão em um campo suspenso, onde não há uma estrutura particularmente espessa e fértil. O que acontece é uma forte intencionalidade de ser permeável e didático na medida que acompanha determinadas etapas dessa trama, mas há uma perda progressiva de foco em seus eixos. É uma questão político-cultural da obra, pois as internacionalizações se tornam internalização e o retrato passa a ser do privado, particular, à criação material de outro privado e particular. Uma espécie de âmago da burguesia para uma reconstrução a partir dos imaginários.
É uma tendência política essa abordagem que tangencia as bordas de uma estrutura material que é retratada. Não é particularmente um problema, mas um posicionamento político e estético diante da realidade ali criada. Dessa maneira, o filme de Djin segue um caminho rigorosamente arquitetado pela diretora, há algumas perdas de ritmo, quiçá interesse, mas a obra não torna o paralelo uma aberração em sua estrutura, assimila o mesmo como parte desse virtuosismo dramático possível e que rege as criações constantes. E aqui, se abre o vigor de gostos e pessoalidade diante do filme, ainda que o reconhecimento dessa linha fixa e pré-definida seja exterior à obra, deve-se ressaltar a formalidade de transpor as intenções à obra, como uma estrutura bastante rigorosa.
“Mulher Oceano” acaba não encantando com as tentativas de tornar versátil seus processos de câmbio e torna a experiência em uma lenta observação e contemplação de modificações dramáticas de seus personagens, mas a falta de articulação para sustentar os tendões do projeto, permite que suas fragilidades sejam expostas. É mais um síntese da problemática que venho expondo ao longo dos anos, quanto mais há representações e um virtuosismo de se compreender as produções brasileiras como uma continuidade de trabalho à longo prazo com a estrutura vigente nas andanças políticas. Ou há uma mudança política, ou o cinema vai precisar divergir um bocado dos encaminhamentos da leitura convencional que vem sendo feito recentemente.
Djin estreia com personalidade e uma força própria, nada de imediatismos com o nome do pai. Por mais que sem grandes impactos, é um nome a ser seguido nos próximos anos.