Mulher
Mais que poesia: a realidade em sua dureza
Por Roberta Mathias
Em um momento no qual as identidades e papéis de gênero estão sendo redefinidos e discutidos amplamente em todas as áreas e estudo, desde a biologia, até às artes, um documentário como “Mulher“, mereciam por parte da Imovision, sua distribuidora no Brasil, um cabine de imprensa no Rio de Janeiro com a consequente possibilidade de visibilidade maior em seu lançamento, agendado propositalmente para a semana em que se lembra as lutas de 8 de março outrora denominado Dia Internacional da Mulher – após ser parte da seleção oficial do Festival de Veneza de 2019.
Não falo aqui como crítica, mas como mulher.
Durante as quase duas horas de filme, a ucraniana Anastasia Mikoba e o francês Yann Bertrand conseguiram explorar uma intimidade de particulares culturais, corporais, éticas e sensoriais. Ao iniciar o longa-metragem, há uma sequência na qual uma mulher dança ao lado de um baleia explorando o simbolismo do animal marinho, atrelado à força e feminilidade. Ainda que, particularmente, ache que esse início forçadamente poético tenha quebrado a narrativa que já havia sido iniciado com o relato de uma das mulheres escolhidas, não há o suficiente para enfraquecer o que vem depois.
Em “Mulher” os depoimentos de duas mil mulheres em mais de cinquenta países mostram a multiplicidade de corpos e ideias que está por detrás de um conceito de gênero datado. A luta iniciada pelas sufragistas no início do século XVIII se modificou e criou vastas possibilidades de compreensão.
O que é uma mulher? Somos mulheres simplesmente porque um conjunto de fatores genéticos o decidiu? Por que um conjunto de normas sociais nos qualificou como tal?
Hoje, essas certezas que vêm se desconstruindo ao longo do século XX são problematizadas em filmes como o documentário “Mulher”. Ao colocar essa pluralidade de corpos em frente à câmera, os diretores conseguem extrair confissões e traumas variados advindos de uma formação cultural que ainda necessita enquadrar os corpos para não perder o controle. Não falo apenas do caráter biológico, no qual podemos discutir sobre a luta das mulheres trans por reconhecimento, mas principalmente do entendimento do que é ser mulher em cada um das culturas expostas na tela.
Ao percorrer e deixar se perder nesses discursos, os documentaristas deflagram a diversidade cultural que reafirma algo que deveria já nos soar óbvio hoje: não há uma única maneira de ser mulher. O feminino é uma construção social e, ao ser entendido como tal, potencializa as oportunidades desses corpos que ainda lutam por voz e direitos. É por mais possibilidades de escolhas e por um não sexualização dos próprios corpos que a maioria dos discursos clamam. Nesse momento, os corpos dessas mulheres tão diferentes e tão distantes, se encontram.
Ao filmar também fora do estúdio e contextualizar o cotidiano dessas mulheres, o filme também cresce, pois aí explora as multiplicidades de papéis, de casas e de trabalhos que ocupam. Nesse sentido, creio que a obra ganhe mais nos discursos de mulheres que nos olham nos olhos e ao mostrar seus cotidianos do que quando tenta ser poético, fato que ocorre novamente na sequência final. De qualquer sorte, como disse anteriormente, isso não enfraquece a importância de “Mulher” e a riqueza do material filmado. No entanto, há poesia em nossos corpos,mas ela vem do cotidiano sem precisar de metáforas para ampará-las.