Morto Não Fala
Suspense real ou loucura projetada?
Por Fabricio Duque
Festival do Rio 2018
Cada vez o cinema brasileiro embrenha-se mais na produção de filmes de gênero. Mas a “modinha nova onda” não é tão nova assim. José Mojica Marins já apresentava seu Zé do Caixão nos anos sessenta. O sueco Ingmar Bergman e o franco-polaco Roman Polanski também. A incursão considerada menor e de filme b, ganha agora qualidade técnica digna das produções hollywoodianas (ainda que com ínfima verba abrasileirada). “Morto Não Fala” (2018), exibido na mostra competitiva do Festival do Rio 2018, é um desses exemplos.
Integrante das obras do chamado terror psicológico, o longa-metragem infere uma junção de psicanálise metafórica com os gatilhos comuns do jump scare (artifícios característicos que induzem o espectador a “pular de susto”). Há ainda aqueles que definem este estilo como “pós-terror“, termo excomungado e massacrado por cinéfilos de plantão. Tudo é traduzido por uma atmosfera etérea, metafísica e naturalista-realista, por causa da sensação de medo reverberada exclusivamente por mentes instáveis, em que a loucura psicomotora adultera percepções sociopatas. É uma crônica confusão de pensamentos e emoções. Nós podemos até comparar com o seriado “A Sete Palmos”, da HBO.
Ainda que “Morto Não Fala” busque a seriedade das reações, o roteiro é levado à comédia. O público encontra respostas de sua estranheza no filme “Os Mortos Não Morrem”, de Jim Jarmusch, com “It – Uma Obra-Prima do Medo” (1990), de Tommy Lee Wallace. Produzido pela Casa de Cinema de Porto Alegre, a obra em questão aqui decide aprisionar o espectador no submundo (um pós-apocalipse com fotografia saturada ao soturno), na estrutura orgânica do viver e reagir (à moda de “Bar Luva Dourada”), à margem primitiva do comportamento humano completamente sem máscaras e hipocrisias sociais: panorâmico com sua câmera-drone e visceral com sua necropsia no Instituto Médico Legal (com um que de “Para Minha Amada Morta”, de Aly Muritiba). É uma “vida desgraçada”, parecida com “Como é Cruel Viver Assim”, de Júlia Rezende.
Sua narrativa é embalada por picardias chulas, populares (a figura do “Palmeirense”) e piadas grosseiramente ingênuas – zoações-brincadeiras, como “queijo suíço”. É um ambiente de “macho”. “Morto Não Fala” é uma inversão do Dexter. Aqui, o protagonista Stênio, plantonista de um necrotério, encarnado por Daniel de Oliveira, conversa com os mortos. Sim e não. Há apenas um leve inferência a “O Sexto Sentido”, de M. Night Shyamalan.
A história apresenta sua vida como um estudo de caso (a insensibilidade do pai, a esposa (a atriz Fabiula Nascimento) desistente dele: irritada, intolerante, “marrenta”, barraqueira, reclamona, direta e agressiva nas ofensas – “o cheiro fica – entra e empesteia tudo, que nojo” – e nas ordens ao marido; a filha que diz por “sussurros”; “mãozinha” e “piolhinho”) para humanizar e embasar suas ações a La “Coringa”, de Todd Phillips, e “A Sombra do Pai”, de Gabriela Amaral Almeida. “Se eu conto aqui o que vocês me contam aí… vai me dar problemas”, diz-se, entre confissões e “maquiagem perfeita e na surdina”.
O longa-metragem também flerta com possessões e com a premissa da saga “O Senhor dos Anéis”, de Peter Jackson. Mas ao se desenvolver, a novidade vira elemento comum: mais didático e até mesmo mais caricato. E nós questionamos se é dom paranormal ou loucura? Intuição ou verdade? Ele recebe mesmo mensagens do Além ou é apenas uma constatação do que já sabe?
A paranoia instaura-se. Ele “perde” a rotina e a calma. Será a consequência-consciente-urgente-passional de um homem traído? Entre “vida louca”, “peteca de fumo”, “morte decretada”, Stênio é frio, calculista, faz jogos, é malandro, mas não “psicopata”. “Segredo de morto é segredo de morte”, diz-se. Tudo muda. A obsessão aumenta os sustos, vinganças, tragédias e a “maldição assombrada”. Tempo passa. Vida “afunda”. E mais “coisas estranhas” acontecem. Mais anormalidades. É quando o filme perde o limite que começa a acontecer de verdade. Dentadas no coração, escatologia, pistas, detalhes. A vida vira um caos e se auto-destrói, como se fosse um desalinhamento do Universo. “Céu e Inferno na Terra juntos”.
“Morto Não Fala” acontece na mórbida loucura espalhada, principalmente quando “despiroca”. Entidades, encostos, colunas arrancadas, cemitério (“Cemitério Maldito 2”?), pilha fraca, antecipação de aniversário, a lua e a névoa. O espectador lembra de “Invocação do Mal”. Sim, não é mais psicológico e sim exemplar típico do gênero terror (de estágio personificado e real). “Quem se arrisca, se arrisca sozinho”. Ainda que fique forçado, não podemos negar que é um filme de cinéfilo. Seu realizador Dennison Ramalho, estreante na realização de um longa-metragem, pululou referências de cenas icônicas, filmes clássico-cult-nerd e pinceladas muitas de seus curtas anteriores de gênero fantástico. “Morto não fala”, mas o filme aqui está bem vivo.