Morcego Negro
As faces do vilão do Brasil
Por Pedro Sales
É Tudo Verdade 2023
A política brasileira nos anos 90 é marcada por muitas pessoas e fatos. De um lado, os presidentes Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, o FHC. Do outro, a inflação galopante, o Plano Real e as privatizações. Um dos mais inusitados capítulos dessa história da redemocratização, porém, não se restringe a esses nomes e acontecimentos. A figura emblemática de PC Farias, para mim, nunca foi o homem de bigode e óculos escuros que estampava capas da Revista Veja, dava depoimentos no Congresso ou alimentava os noticiários com sua fuga mirabolante. Nasci dez anos após o impeachment de Collor, tudo que sei sobre PC está calcado no que li, ouvi e vi, incluindo uma foto que jamais esquecerei: o cadáver do ex-tesoureiro ao lado da namorada Suzana Marcolino, também morta. Essa imagem sempre me assombrou, mesmo sem saber o que de fato simbolizava além da morte.
Em “Morcego Negro”, documentário premiado no Festival É Tudo Verdade de 2023, a controversa trajetória de PC Farias é explorada. Dirigida por Chaim Litewski e Cleisson Vidal, a obra em momento algum é complacente ou juíza de seu personagem. Entende-se, portanto, a complexidade dessa figura. Os depoimentos variados de familiares, amigos, rivais e detratores permitem esse panorama amplo da figura, uma visão caleidoscópica do homem que se tornou “vilão do Brasil”. Picareta, leal, corrupto e companheiro são alguns adjetivos que podem ser levantados por meio das entrevistas, mas a direção o faz sem orientar o espectador ao juízo de valor para o empresário e ex-tesoureiro. Cabe a quem assiste tirar suas próprias conclusões, seja pelos fatos noticiados à época, o próprio entendimento do público ou as argumentações dos depoimentos.
Surgido em Alagoas ao lado de Fernando Collor, que viria a ser o primeiro presidente eleito pelo voto popular após a ditadura militar, PC Farias ficou conhecido por ter sido tesoureiro da campanha presidencial do ex-mandatário. Para além do escândalo sobre supostas irregularidades na captação de recursos destinados à campanha, a influência de PC e sua espécie de governo paralelo, envolto em negócios escusos e extorsão, deflagraram o esquema PC, determinante para o processo de impeachment de Collor, em 1992. “Morcego Negro”, cujo título refere-se ao nome do jato particular de PC, traça uma genealogia dessa figura, desde seu nascimento e formação em Alagoas à morte polêmica na capital do estado, em 1996. Nesse sentido, as entrevistas conduzem narrativamente a progressão cronológica e, conforme novos rostos aparecem para contar suas experiências e impressões, mais inusitada se torna a trajetória do empresário.
Embora o documentário consiga situar bem o espectador neste importante capítulo da história recente brasileira, ele o faz de um lugar confortável e quase sempre conservador na linguagem cinematográfica. A alternância se dá entre cabeças falantes no presente e arquivos no passado. Esse fato poderia facilmente ser uma armadilha, não fosse a variedade de fontes (Collor, Calheiros, jornalistas e autoridades) e de imagens de arquivo, que dão robustez ao longa. Assim, o filme apenas permite maiores ousadias na linguagem por meio de recursos visuais que remetem a diários, boletins policiais ou telas de computador. O uso da trilha sonora com músicas eruditas para reforçar a dramaticidade da progressão trágica do ex-tesoureiro também atua nesse âmbito, trazendo um peso emocional que muitas vezes o simples relato em frente a câmera não consegue alcançar. Os únicos momentos em que isso não funciona são com a repetição excessiva do leitmotiv de tango a cada vez que mencionam o doleiro La Salvia, com quem PC teve proximidade.
“Morcego Negro” é um longa que reconhece plenamente a potência cinematográfica da inusitada história de PC Farias. O tráfico de influência, as negociações com empreiteiras, as investigações e a fuga do país, por si só, já demonstram isso, sendo o assassinato-queima-de-arquivo o ápice do absurdismo histórico. Aliás, todo o início da redemocratização é bastante rico narrativamente, não é por acaso as inserções da telenovela “O Marajá” que satirizava a gestão de Collor, autointitulado caçador de Marajás. Diante do fato de o inusitado ser intrínseco à história, a montagem da obra de Litewski e Vidal constrói um ritmo de progressão gradual desses episódios, aumentando cada vez mais a dimensão das relações de PC, de políticos à máfia. Por mais que o documentário lide com muitos fatos e em alguns momentos se torne cansativo por quase desorientar o espectador com tantas informações, sempre mantém uma nova peça na manga para formar o quebra-cabeça de PC Farias, aquele tido como “vilão” do país.