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Miss Violence

Dance me to the End of Love

Por João Lanari Bo

Festival de Veneza 2013

Miss Violence

Se há um filme cruel – em todos os sentidos, sobretudo na relação com o espectador – é “Miss Violence”, realizado em 2013 pelo grego Alexandros Avranas. Com um clique na (igualmente) cruel IA, desvendamos a etimologia da palavra “cruel”: originária do latim “crudelis”, que significa “sanguinário” ou “insensível à dor alheia”. Essa palavra latina, por sua vez, está relacionada com “cruor”, que significa “sangue derramado”. Assim, a etimologia de “cruel” aponta para a ideia de alguém que sente prazer em causar sofrimento ou que é insensível à dor, seja ela física ou emocional.

Um crítico grego, Christos Mitsis, escreveu à época do lançamento: Utilizando a metodologia fria de um Haneke (geometria austera, paleta de cores desbotada) e a maestria sugestiva de um Polanski (a ameaça que espreita fora da tela), Avranas perturba o público tanto emocional quanto psicologicamente, deixando-o desamparado na busca por respostas.

As intenções cruéis do filme são óbvias desde a cena inicial, particularmente cruel. O primeiro plano mostra uma porta fechada: ela se abre, aparecem duas meninas de mãos dadas caminhando, com as cabeças cortadas pelo enquadramento, até a um ambiente onde o restante da família as aguarda com um bolo de aniversário. Uma delas, a menor, sopra as velas e dança com o patriarca ao som de Dance me to the End of Love, de Leonard Cohen, canção inspirada no Holocausto. Angeliki (é seu nome) caminha em direção ao ponto de vista da câmera, com um leve sorriso angelical e um olhar fixo, mas suave. Ela sobe em cima da murada da varanda e salta para a morte.

Miss Violence” causou sensação no Festival de Cinema de Veneza de 2013, onde estreou, conquistando diversos prêmios, incluindo o Leão de Prata e o de Melhor Ator para Themis Panou, que encarna o protagonista e chefe do lar. Seguiu-se uma carreira de sucesso em festivais de cinema, de Hamburgo a Montreal e São Paulo, conquistando diversos outros prêmios e indicações. Junto com uma leva de cineastas gregos agrupados por um crítico do The Guardian sob o rótulo “Greek Weird Wave” – entre eles o bem-sucedido Yorgos Lanthimos, de “Dente Canino” (2009) e “Pobres Criaturas” (2023) – Avranas dedica-se, sem clemência, a implodir a instituição “família”.

Desamparado ou não, o público viu-se diante de produções que refletem, em alguma medida, a crise financeira experimentada pela Grécia nos anos 2000. A política e a economia seriam administradas, no país que é o berço da civilização ocidental, como uma família – como uma estrutura patriarcal, sujeita a círculos viciosos de desejo e posse, disfunções e crises. Em “Miss Violence”, o círculo vicioso se materializa nos abusos sexuais e prostituição com que o patriarca condena as mulheres da família. Ao contrário dos filmes de Lanthimos, entretanto, sempre carregados de leituras alegóricas e humor negro, esse círculo, essa permanente crueldade, é descrita em termos realistas, sem rodeios ou subterfúgios.

Realistas, mas não no sentido narrativo vulgar: seria algo mais próximo ao que psicanalista Jacques Lacan define como “real”, ou seja, a força que impulsiona o sujeito, através do desejo e da angústia, e que se manifesta em sintomas e atos falhosque não pode ser totalmente simbolizado ou representado pela linguagem, escapando ao registro simbólico.

Este é um filme, portanto, paradoxal. Ao mesmo tempo que flui de forma linear, comunica-se por elipses e insinuações, já que imagens de corredores vazios e portas fechadas negam, em grande parte, acesso visual aos eventos patéticos que constituem a ruptura da harmonia familiar. A violência, claro, está lá, ubíqua, eventualmente repentina, mas sempre fria, não edulcorada. Presente nos olhares da mulher, das filhas, neto e netas, ela parece surgir ao acaso, subitamente, moldada pelo comportamento meticuloso e trivial do patriarca-âncora. Não há nenhum traço de romantismo em suas ações, não há sequer imaginário romântico: só restam os resíduos da espessura material que constituem e envolvem os personagens.

Se a família disfuncional pode ser entendida como uma metáfora para a crise político-institucional grega no raiar do século 21, o suicídio de Angeliki serve de ato de abertura para a tragédia que vai se desenrolar – uma verdadeira tragédia grega, cujo desfecho violento e a portas fechadas provê o respeitável público da catarse necessária e bem-vinda.

Em outras palavras: uma libertação, expulsão ou purgação do que é estranho à essência ou à natureza de um ser e que, por isso, o corrompe.

4 Nota do Crítico 5 1

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