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Mishima: Uma Vida em Quatro Tempos

Patriotismo

Por João Lanari Bo

Festival de Cannes 1985

Mishima: Uma Vida em Quatro Tempos

Mishima: Uma Vida em Quatro Tempos”, dirigido por Paul Schrader em 1985, tornou-se um clássico. E como todo clássico que se preza, com um histórico polêmico e censório: a primeira exibição oficial no Japão foi há poucos dias, no Festival Internacional de Cinema de Tóquio, quarenta anos depois de concluído. Schrader foi quem que teve a ousadia de rodar um biopic sobre a vida do famoso escritor Yukio Mishima, uma das personalidades mais controversas – o termo é insuficiente, Mishima foi muito mais do que “controverso” – em pleno Japão, país altamente cioso da sua singularidade cultural e hostil a estrangeiros que se atrevem a falar de assuntos, ainda mais “controversos”, japoneses.

Foi em 1970 que Mishima entrou no QG do Exército no centro de Tóquio, vestido como militar e acompanhado de companheiros milicianos, para cometer um “seppuku” público. Mishima iniciou o suicídio por esventramento, na presença do General tomado como refém, cortando o ventre da esquerda para a direita: com o ritual inconcluso, como ocorre na maioria das vezes, foi decapitado pelo auxiliar (e amante). Estava acompanhado de membros da milícia que fundou em 1968, a “Sociedade do Escudo”.

Antes, falou para uma plateia de soldados, no balcão do quartel. A TV filmou tudo, inclusive protestos e vaias da audiência. O discurso apelava para uma aliança com os militares em prol de uma “revolução purificadora”. O seppuku, ou hara-kiri, foi no gabinete, sem câmeras e na presença do comandante. Tinha 45 anos. Para muitos no Japão o melhor escritor de sua geração, Mishima deu uma guinada para a extrema direita a partir da onda de protestos contra o ANPO, acordo militar Japão-EUA, em 1960. Tornou-se um nacionalista peculiar, radical e arraigado.

De formação intelectual extremamente sofisticada, cultivava também o físico – Donald Richie, o melhor intérprete do cinema japonês e que era seu amigo, conta como Mishima apreciava ser reconhecido como bodybuilder. Escreveu peças de teatro, romances, ensaios. Casado, com filha e filho, alternava entre vida familiar e relações homossexuais. Paradoxalmente, sua casa era decorada no estilo ocidental, com mobília francesa século 16 e uma estátua clássica do deus Apolo. Um plano do jardim da casa abre “Mishima: Uma Vida em Quatro Tempos”, Mishima (Ken Ogata, excelente ator dos filmes de Imamura) toma café com porcelana francesa, preparando-se para o ritual.

Paul Schrader escreveu o roteiro com seu irmão Leonard, que vivia no Japão à época, casado com japonesa, Chieko. Passou quatro anos negociando direitos com a viúva do escritor. Mesmo depois de concluído, ela tentou reverter o acerto, sem sucesso. A opção dos roteiristas foi arriscada: narrar os momentos prévios do seppuku intercalados com sequências curtas em preto e branco de momentos biográficos de Mishima, além de cenas tiradas de trechos dos livros “O pavilhão dourado”, “Cavalos em Fuga” e “Casa De Kyoko”, este último sem tradução no Brasil. Com cenografia estilizada ao modo do teatro kabuki – cores fortes, representação realista e emocional – essas sequências, filmadas em estúdio em Tóquio, contribuem para compor um quadro de alusões psicológicas do próprio Mishima.

As cores no kabuki, nos figurinos e cenário, exprimem sentimentos fortes. Consultando a IA, por exemplo, tem-se: vermelho, representa heróis, paixão, força e justiça; azul, usado para vilões, medo e emoções negativas como ciúme; roxo, indica nobreza ou um personagem de alto escalão; e verde, personagens sobrenaturais ou o começo fresco e novo da juventude. Em “Mishima: Uma Vida em Quatro Tempos”, esse repertório configura uma matriz de imagens-afeto, que adiciona uma percepção instigante e sedutora.

O teatro trágico e espetacular de Mishima – é assim que Schrader define o ato no quartel – deixou muita gente no Japão estupefata. Se tinha algo de político no gesto, esvaiu-se com o tempo, apesar de uma extrema direita radical e nostálgica do imperialismo persistir naquelas paragens. O que resta é a complexidade psicológica do escritor-performer, algo difícil de entender e que nem os japoneses entendem, como diz o diretor.

Em 1960 Mishima escreveu conto sobre um tenente que comete seppuku junto com a esposa, na margem da revolta frustrada dos oficiais (excessivamente) leais ao Imperador, em fevereiro de 1936. O conto virou um média-metragem de 27 minutos, em 1965, intitulado “Rito de amor e morte”, com o próprio Mishima dirigindo e fazendo o protagonista. O título original traduz-se como “Patriotismo” – rodado em dois dias, não tem diálogos. A estetização da morte e a descrição gráfica do ato sugerem que seu filme foi um ensaio do próprio suicídio teatral, poucos anos mais tarde.

Em 1965, Mishima deu uma entrevista à BBC quando disse que o seppuku é um modo positivo e imponente de morrer: não tem nada a ver com o conceito ocidental de suicídio, ligado à derrota e ao fracasso.

E completou: ele pode fazer com que você vença.

5 Nota do Crítico 5 1

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