Mindhunter
Psycho Killers
Por João Lanari Bo
“Mindhunter” poderia ser mais uma série da Netflix que investe no binge-watching, ou seja, na seção do público que não se segura e é capaz de assistir até seis (ou mais) episódios seguidos! Esse fenômeno comportamental da audiência contemporânea, que atingiria em torno de 60 % do público, tornou-se a mola mestra do consumo do streaming, para o bem e para o mal – e, junto com o binge-searching, frenética busca por conteúdos e pesquisa incessante no Google, e o speed-watching, capacidade de acelerar a velocidade da exibição, inaugurou uma nova forma de consumir televisão. Normalmente, a adrenalina da ação, a manipulação do drama, a exposição nua e crua da violência, corpos mutilados, tiros e explosões – tudo isso é batido inapelavelmente no mix da linguagem audiovisual, de modo a estabelecer vínculos psicomotores com os espectadores ansiosos para extrapolar, ainda que simbolicamente, as amarras do sistema nervoso que nos conforma. Mas em “Mindhunter” é diferente: as duas temporadas da série são obsessivamente econômicas na visualização (e catarse) da violência gráfica, embora tenham como núcleo narrativo o esforço de dois agentes do FBI em entrevistar serial killers presos, com o intuito de entender como esses criminosos forjaram seus desejos assassinos – e, em paralelo, como aplicar tal conhecimento na solução de casos concretos. Os personagens e situações, todos reais, foram extraídos de livro escrito por John Douglas, um dos agentes, que se notabilizou por pesquisas no campo da psicologia criminal. Mesmo com esse tratamento cool, a série amealhou uma legião de fãs, que se ligaram nas descrições abstratas e objetivas dos mais escabrosos assassinatos e estupros, em níveis muito além da perversidade sádica habitual da TV. As mulheres eram inicialmente indiferentes para mim, diz um dos assassinos, Ed Kemper, que matou dez mulheres, incluindo sua mãe, com cuja cabeça decapitada fez sexo. Como dramatizar um episódio desses?
Outro fator a estimular essa abordagem mental do material é, sem dúvida, a presença de David Fincher como diretor (sete episódios) e produtor, que confere um tratamento diferenciado à série. Fincher, não é preciso ressaltar, tem uma longa carreira bem sucedida no audiovisual norte-americano, de videoclipes a longas como “Rede Social”, “Clube da luta” e “Zodiac” – neste último, um cartunista de São Francisco se torna um detetive obcecado em rastrear serial killer de São Francisco. De certa maneira, o cineasta é um dos inventores do streaming: foi produtor executivo de “House of cards”, provavelmente a série mais vista da Netflix. A ideia que gerou “Mindhunter” pode ser extraída de um dos livros publicados por John Douglas, onde se lê:
Agentes do FBI que são investigadores de perfis examinam crimes para obter informações que revelam as características do infrator. Embora não seja exatamente o mesmo de impressões digitais, certos padrões da personalidade do infrator podem ser detectados através do exame de provas da cena do crime. Em nosso estudo de trinta e seis assassinos sexuais, fomos capazes não apenas de identificar alguns desses padrões, mas também examinar os fatores que se acredita influenciaram o desenvolvimento desses padrões. As informações de fundo que coletamos, por meio de entrevistas e registros, nos permitiu tirar algumas conclusões sobre esses homens.
“Mindhunter” é também um inventário, consciente ou não, da masculinidade tóxica que veio à tona nesse início do século 21. Não é que não existisse ao longo dos tempos, obviamente sempre existiu, mas a tipificação desse crime e a terminologia mesma – serial killer – são relativamente recentes. Estudo sobre artigos de jornais indica que, no New York Times, o termo foi utilizado pela primeira vez em 1981, para descrever os crimes de Wayne Williams, em Atlanta. Na década de 1980, o termo voltou a ser usado em 233 ocasiões: no final dos anos de 1990, o uso aumentou para 2.514 ocorrências. Hoje, o comportamento dos homens vem sendo intensamente escrutinado e divulgado, sobretudo após ao #metoo, e padrões de reincidentes estão sendo cruzados – exatamente o que fizeram os agentes do FBI, procurando desvendar as pulsões sexuais subjacentes aos crimes perpetrados por homens contra mulheres. No início, eram homens investigando homens: à dupla de agentes, entretanto, se integrou uma psicóloga e acadêmica, também inspirada em personagem real, vivida na tela pela carismática Anna Torv – reforçando ainda mais o ângulo científico do roteiro.
Talvez o principal mérito de “Mindhunter” seja a qualidade dos diálogos, rápidos e certeiros, sem falsos atenuantes naturalistas. Os crimes, descritos apenas por meio de palavras e fotos, impactam mais do que se fossem encenados, evitando dessa forma a saturação da violência a que somos submetidos diariamente nas séries policiais. Nesses diálogos, constrói-se uma radical anatomia da misoginia, baseada em episódios (quase) inenarráveis da psicopatologia do cotidiano.
1 Comentário para "Mindhunter"
Excelente série! As poucss coisas que não eram tão atrativas no livro (personagens com vidas comuns e o protagonista arrogante e maçante), foram adaptadas (senão totalmente mudadas) para ficarem intrigantes na série. Torço muito para a Netflix voltar com mais 3 temporadas (que foi a intenção inicial do projeto). Na minha opinião, a melhor série da Netflix até hoje!