Milton Gonçalves, Além do Espetáculo
Diferentes retratos
Por Vitor Velloso
Festival do Rio 2025
O novo filme de Luiz Antonio Pilar (“Lima Barreto ao Terceiro Dia”, 2019; “Candeia”, 2018), que vem realizando um importante trabalho no retrato de figuras negras da cultura brasileira, “Milton Gonçalves, Além do Espetáculo”, é um documentário que se debruça sobre a vida pessoal e pública de um dos maiores atores de todos os tempos. O projeto procura costurar, e de certa forma é eficiente nisso, como particularidades da vida de Milton podem ser vistas em sua carreira, em seus personagens e em seu discurso abertamente político, sobre o qual comentaremos mais adiante.
Assim, conforme o longa avança, o exercício de apresentar o caráter complexo desse grande “personagem” público, articulando-o à sua vida particular, vai se mostrando eficiente, pois os depoimentos de familiares e amigos próximos, aliados aos materiais de arquivo que mostram Milton em seu campo de trabalho, formam um quadro heterogêneo de um gênio que tentou, da forma como pôde, transformar a cultura brasileira em todos os aspectos que estavam à sua disposição. Contudo, há um constrangimento que “Milton Gonçalves, Além do Espetáculo” não consegue superar: o posicionamento político-eleitoral de Milton. Esse aspecto é tão objetivo quanto estranho à estrutura do filme, pois, da mesma forma que surge de maneira orgânica no desenvolvimento, depois de mencionada sua participação no campo eleitoral e sua candidatura ao governo do Estado do Rio de Janeiro em 1994, o debate sobre Milton ser de direita ou de esquerda parece bastante infrutífero na forma como o projeto o apresenta.
Isso acontece porque a fala que introduz o tema, com Antônio Pitanga afirmando que o ator era de direita, e o depoimento de Ivanir dos Santos, que contextualiza os termos de forma mais assertiva e menos anacrônica para o debate público, gera uma expectativa que não se cumpre. Ou seja, Antônio Pitanga levanta uma polêmica que o documentário explicita, levando-nos a crer que se tratará de um assunto a ser desenvolvido; Ivanir pondera, explicando de maneira didática que essa categoria de “direita”, tal como estabelecida no campo político contemporâneo, não se aplica a Milton; e, em seguida, o filme passa a tratar da paixão do ator pelo Clube de Regatas do Flamengo. Essa construção levanta o questionamento sobre o motivo de se mencionar algo que parece render um largo debate dentro da perspectiva apresentada, mas que é descartado imediatamente como algo de menor relevância. Este é o ponto que gera debate, pois é possível encarar esse assunto como realmente irrelevante, levando em consideração que o filme é uma grande homenagem a Milton Gonçalves, em especial à pessoa em espaço privado, mais do que ao homem público. Assim, essa digressão destinada a levantar uma suposta polêmica, seguida de seu abandono repentino, não parece fazer sentido dentro da proposta aqui estabelecida.
De toda forma, “Milton Gonçalves, Além do Espetáculo”, como o título propõe, é sobre esse homem de família, devoto à função de pai. Aliás, são belíssimos os depoimentos das filhas sobre essa característica de Milton, pois, diferentemente de boa parte dos documentários que vemos sobre grandes figuras da cultura brasileira, há uma grande entrega à família. Nessa perspectiva, o filme consegue entregar um lado distinto do que é sempre debatido sobre o grande ator. Por outro lado, parece relegar toda a história e impacto de seu trabalho aos depoimentos de amigos e familiares, como se transferisse parte dessa responsabilidade aos entrevistados, seja pela tentativa de relação direta entre esses “dois mundos”, seja por uma certa falta de interesse nesse desenvolvimento. O que é uma pena, pois em determinados momentos essa dualidade parece funcionar bem, muito por conta dos depoimentos; em outros, parece deslocar-se para um lugar de constante incerteza, afinal o documentário parece perseguir uma figura muito particular dentro de um amplo mosaico de “Miltons”.
Por fim, o projeto tem bons momentos, com depoimentos interessantes e uma tentativa de resgate histórico da importância de Milton Gonçalves para a cultura nacional. Isso aparece, por exemplo, quando se menciona que ele foi o primeiro ator contratado da Rede Globo, antes mesmo de sua “estreia”, algo que Toni Tornado sempre destacou em entrevistas. Porém, uma certa incerteza estrutural faz “Milton Gonçalves, Além do Espetáculo” patinar por longos períodos durante a projeção, dando a sensação de reunir pedaços de pequenos blocos representativos de um projeto sem tanta certeza de seu funcionamento.


