Migliaccio, o Brasileiro em cena
Um gigante brasileiro
Por Vitor Velloso
Pouco mais de ano após o Brasil matar um dos grandes atores de nossa história, “Migliaccio, o Brasileiro em cena” de Tuco, Alexandre Rocha e Marcelo Pedrazzi é exibido para lembrar a vida e carreira desse pilar fundamental na compreensão da cultura nacional em representação.
O documentário se propõe ao apanhado totalizante de sua trajetória, com auxílio de uma série de matérias de arquivo, entrevistas e depoimento gravadas para o projeto em si. Alguns méritos devem ser levantados nessa construção. A utilização desse arquivo como uma exposição das falas de Migliaccio sobre sua vida e carreira, traçando paralelos de seus papéis com situações reais de sua vida, o trecho em que descreve seu período enquanto engraxate é bastante notório nesse caminho. A forma com que costura os tempos distintos de entrevistas para cadenciar uma consciência particular desses momentos. O formato didático com que exibe os conteúdos de meios televisivos, teatrais etc. E uma atitude ética que não vemos todos os dias: a não exploração do suicídio do ator. Esse último ponto, em especial, é especialmente honesto, pois grande parte do mercado cinematográfico estaria disposto a se debruçar e fetichizar a morte.
“Migliaccio, o Brasileiro em cena” celebra a carreira acima de tudo, recorta os momentos para lembrar que o ator interpretou parte do povo brasileiro nas telas e nos palcos.
Os múltiplos formatos dos materiais de arquivo criam um desafio que a montagem não lida tão bem e o ritmo cai drasticamente. A diversidade dos depoimentos e de imagens que complementam sua vida, mas divergem no fluxo, faz com que o projeto fique cansativo rapidamente. É um excesso que passa a consumir o espectador e arrasta um bocado a projeção. Não à toa, o filme tenta encontrar amparo constante para suas escolhas na própria fala do ator, em múltiplos tempos, o que amplia ainda mais a personalidade e trajetória do protagonista. E as próprias capturas não são tão organizadas no sentido da montagem, algo que Migliaccio parece sintetizar próximo ao fim “São muitas coisas nesses 80 anos, eu não sei o que vai ser desse filme”.
E é provável que o processo foi revelando parte da estrutura que vemos no objeto final e que os acontecimentos recentes tenham modificado a dinâmica inicialmente pensada. Por essa razão, fica claro que o documentário vai tateando seu acervo à procura de uma imagem-síntese do que é Migliaccio para nossa história, ou ainda melhor, do que ele representa. Não à toa, “Migliaccio, o Brasileiro em cena” parece se desprender dessa ideia conforme se articula, pois percebe que essa identidade é gerada na diversidade, no quão multifacetada é a carreira do ator. Como homenagem, funciona para criar um panorama totalizante de seus trabalhos, recorrendo a exercícios didáticos de contextualização histórica e material de suas dificuldades para se manter na profissão. Já como exercício cinematográfico para uma espécie de “biografia” carece de uma organização mais funcional.
Utilizando alguns dispositivos para acessar outros campos dessa interpretação, o longa oferece algumas leituras de texto que estão entre a confissão e o depoimento, tal como a peça que cruza parte da projeção. Por esse motivo, o espectador pode sentir que as escolhas parecem brevemente aleatórias diante da proposta inicial, onde se desenha uma estrutura mais clássica de apresentação dessa vida a partir de fotografias e trechos de obras. Não é necessariamente algo frustrante, já que parte dos dispositivos funcionam para nos aproximar das práticas e processos criativos de Migliaccio, mas pode acabar afastando algumas pessoas por possuir uma mudança abrupta nessa abordagem.
“Migliaccio, o Brasileiro em cena” é um filme que desperta a curiosidade dos fãs e dos brasileiros que acompanharam parte dos trabalhos do ator. A rigorosa ética de não se curvar diante do trágico fim, deve ser mencionada como uma postura que não fetichiza o fatalismo que acomete parte da sociedade brasileira. Apesar do ritmo, é um documentário que merece ampla exibição em canais abertos, espero que a Globo ceda espaço para homenagear um dos grandes nomes que atravessou a história da emissora, sem adicionar nada que comprometa a decisão de não explorar o fim dessa trajetória.