Meu Bolo Favorito
A coragem de não desistir em tempos modernos
Por Fabricio Duque
Assistido durante o Festival de Berlim 2024
Exibido na mostra competitiva do Festival de Berlim 2024, “Meu Bolo Favorito” apresenta-se como uma sensível fábula intimista que metaforiza as questões sócio-comportamentais etárias de um Irã contemporâneo. Suas personagens trazem a solidão, o tédio e a resignação dos sonhos ainda não completados de idosos da “melhor idade”. O longa-metragem dos diretores iranianos, a Maryam Moqadam e o Behtash Sanaeeha (de “O Perdão”), que não puderam estar presentes na exibição por não terem “passe” para viajar (o governo iraniano confiscou seus passaportes por causa de algumas cenas do filme – sendo a principal questão o hijab), desenvolve sua narrativa pelos detalhes: lembranças (objetos cênicos de uma casa e até mesmo se maquiar para reviver memórias) guardadas do tempo de uma vida e contempladas como um tesouro pelos olhos da personagem de setenta anos. A trama, coloquial e naturalista, acompanha sua zona de conforto em suas ações rotineiras e banais de seu dia-a-dia, entre conversas espirituosas em tom cúmplice de zoação (de sarcasmo ingênuo), assistir novela, fazer tricô e compras no supermercado, e almoçar com as amigas, que “fofocam” contam “verdades” e “flertes”.
“Meu Bolo Favorito” é um micro retrato de como se estar sozinha na velhice e com “tempo de sobra”. Nossa personagem aqui não precisa correr. Tem liberdade, inclusive para levar mais de dez minutos para chegar a um hotel. Mas se sente desconfortável no mundo do agora, por não encontrar mais espaço e identificação, como por exemplo, cardápio em Qr Code e comidas que não se fazem mais. Sim, ela pensa: Cadê a simplicidade do passado? E não acessa mais o universo que conhecia. Só que nossa “veterana” não perde a esperança e não desiste em arrumar um namorado, “partindo para a caça”, quase numa obsessão da procura (porque ela tem pressa e “pouco tempo” restante). Mas percebe que não há mais respeito. Que este novo mundo ficou cínico, robótico e sem sensibilidades humanizadas.
“Meu Bolo Favorito” é um conto sobre etarismo em Teerã. De uma “mulher bem mais velha” que precisa lidar com as mudanças, com a “polícia moral” (o hijad, por exemplo) e que precisa aprender que quanto mais for submissa, mais os homens a colocam para baixo. Ela aprende também que ao “relaxar” em sua busca, possibilidades se tornam real, ainda que dê o primeiro passo. Sim, ela está desesperada para deixar de ser sozinha. Assim, “Meu Bolo Favorito” adentra em outro capítulo: os desconfortos, os medos, os desejos, os quereres, as tradições e as idiossincrasias de dois “pombinhos” que estão se conhecendo: ele, Faramarz (Esmail Mehrabi), e ela, Mahin (Lily Farhadpour).
A maestria do filme está em sua despretensão. Em sua dignidade de aceitar o próprio ambiente que filma. E dessa forma, a melhor definição que se pode dizer sobre “Meu Bolo Favorito” é que este é uma obra fofa, de pureza realista contra sentimentos efêmeros, aproveitando os encontros casuais. Nós somos questionados sobre os porquês dos relacionamentos do agora não durarem. O que leva alguém a ficar casado por sessenta anos? Os dois aqui precisam reativar suas vontades adormecidas e relembrar como é namorar de novo. E isso tudo é transpassado com sinestesia ao público. Nós sentimos seus nervosismos e as vibrações de timidez (mas com atitude – é, eles não têm mais nada a perder). Beber demais “vinho proibido”, falar muito, silêncios demais, arrumar rapidamente a casa e muitas conversas (especialmente no carro, uma das características típicas do cinema iraniano).
Só que “Meu Bolo Favorito” não para por aí. O roteiro, pululado de nuances e poesia espontânea, imerge aprofundando mais camadas, entrando em outros gêneros, como o do thriller, regado a crime, bebidas, arroz e “bolo de flor de laranjeira”. E as últimas cenas mostram que a vida não é Disney, tampouco idealizada e muito menos consegue projetar com fidelidade nossos sonhos. Que “merdas acontecem” e que a Lei de Murphy realmente existe! Mas o filme também não é nem um pouco pessimista e sim realista, maduro, sóbrio, adulto e dotado de um orgânico coloquialismo. Percebe-se que talvez a vida seja mesmo uma espera com benefícios do meio termo, entre o nascer e o morrer. “Meu Bolo Favorito” é um filme tenro, delicado, com coragem, atrevimento político e viço muito bem humorado, que se revela por uma crônica cotidiana romântica de duas pessoas no “fim da vida” que buscam conexões emocionais. Falado em persa, o longa-metragem ganhou o Prêmio Fipresci e o Prêmio do Júri Ecumênico do Festival de Berlim 2024 e se firmou como um sucesso por onde passa.